segunda-feira, 22 de outubro de 2007

LA MORT LE ROI ARTU


Nada fácil falar brevemente sobre La mort le roi Artu, romance anônimo da primeira metade do séc XIII escrito em francês arcaico, obra profundamente dramática, recheada de ricas imagens e que narra o crepúsculo da Távola Redonda.
Heitor Magale, na introdução que faz para sua primorosa tradução em português, assim a apresenta a obra, situando-a dentro do ciclo arthuriano:

“A morte do rei Artur é um romance do seculo XIII atribuído, em seu próprio manuscrito, a Gautier Map e constitui-se no último livro da primeira prosificação ou Vulgata do conhecido Ciclo Arturiano. Antes dessa prosificação, a matéria havia sido tratada em romances em verso e em textos latinos em prosa. No século XII, quando Chrétien de Troyes estava compondo seus romances em verso, a prosa era praticamente reservada para traduções do latim, comentários ou paráfrases de textos sagrados, particularmente sermões. No século XIII, a prosa tornou-se veículo das crônicas em vernáculo. Quando aconteceu de autores principiarem a transformar em prosa os romances arturianos em verso, por volta de 1210, os textos acabaram por revelar-se mais históricos e religiosos. O foco mudou da cavalaria cortês para a busca do Graal e a matéria organizou-se num ciclo de obras que passou a ter como objetivo recontar toda a estória do Graal, desde as origens na paixão de Cristo até a completa realização da busca do Santo Vaso pelo cavaleiro eleito. “
( Heitor Magale; Introdução in A Morte do Rei Artur/ Anônimo; tradução Heitor Magale/ SP: Martins Fontes: 1992 ( coleção Gandhãra); p. 10.

Um resumo satisfatório de tão rico texto seria inútil, o que me faz apenas destacar alguns pontos e questões que nem de longe o esgotam mas que particularmente me interessam. Assim sendo, cabe dizer que, embora produto de uma cristianização mais sistemática da matéria da Bretanha, ainda é possível perceber nesta narrativa alguma tensão entre o imaginário pagão e cristão. Basta invocar por exemplo o confuso destino do Rei Arthur. Em seus últimos momentos Artur aparece em companhia do cavaleiro Gilfrede que, a seu pedido, devolve, mesmo que relutante, Excalibur a Dama do lago. No momento seguinte o mesmo cavaleiro, vale ressaltar, após a “maravilha” de uma forte e repentina chuva, testemunha o rei ser levado pelas fadas lideradas por Morgana em uma nau. Em um segundo momento, entretanto, o mesmo Gilfrete localiza uma capela negra onde encontra surpreendentemente o túmulo do rei. Justapõem-se, assim dois destinos na narrativa oriundos certamente de diferentes fontes e versões utilizadas na composição do texto. O fato é que tal contradição ganha uma dimensão significativa na medida em que um desfecho “pagão” aparece contraposto a intencionalidade “cristianizadora” representada pelo enterro cristão do rei.
Entretanto, a mais rica e significativa referência pagã na obra é certamente a aparição da deusa Fortuna as vésperas da trágica batalha:

“ ...O rei deitou-se em sua tenda acompanhado apenas de seus camareiros. Depois que dormiu, pareceu-lhe que uma dama vinha à sua presença, a mais bela, como nunca tinha visto no mundo, que o levantou da terra e o levou a mais alta montanha que nunca vistes, lá assentou-o sobre uma roda. Naquela roda havia assentos, dos quais uns subiam e outros desciam, o rei observava em que lugar da roda estava sentado e via que seu assento era o mais alto. A dama lhe perguntava:
-Artur, onde estás?
-Senhora, disse ele, estou numa roda alta, mas não sei qual é.
-è , disse ela, a roda da Fortuna.
Então perguntou-lhe:
-Artur, o que vês?
-Senhora, parece-me que vejo todo o mundo.
-É verdade, disse ela, tu o vês; não há muita coisa de que não tenhas sido senhor agora; e de todo circulo que vês foste o mais poderoso rei que já existiu. Mas tal é o orgulho terreno, que não há ninguém, por mais alto que esteja, a quem não convenha cair do poder do mundo.
Então o pegava e o estrebuchava a terra tão vilmente, que ao cair, parecia ao rei Artur que estava todo quebrado e que perdia toda a força do corpo e dos membros.”

(A Morte do Rei Artur/ Anônimo; tradução Heitor Magale/ SP: Martins Fontes: 1992 ( coleção Gandhãra); p. 204 et seq.)

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