Nada fácil falar brevemente sobre La mort le roi Artu, romance anônimo da primeira metade do séc XIII escrito em francês arcaico, obra profundamente dramática, recheada de ricas imagens e que narra o crepúsculo da Távola Redonda.
Heitor Magale, na introdução que faz para sua primorosa tradução em português, assim a apresenta a obra, situando-a dentro do ciclo arthuriano:
“A morte do rei Artur é um romance do seculo XIII atribuído, em seu próprio manuscrito, a Gautier Map e constitui-se no último livro da primeira prosificação ou Vulgata do conhecido Ciclo Arturiano. Antes dessa prosificação, a matéria havia sido tratada em romances em verso e em textos latinos em prosa. No século XII, quando Chrétien de Troyes estava compondo seus romances em verso, a prosa era praticamente reservada para traduções do latim, comentários ou paráfrases de textos sagrados, particularmente sermões. No século XIII, a prosa tornou-se veículo das crônicas em vernáculo. Quando aconteceu de autores principiarem a transformar em prosa os romances arturianos em verso, por volta de 1210, os textos acabaram por revelar-se mais históricos e religiosos. O foco mudou da cavalaria cortês para a busca do Graal e a matéria organizou-se num ciclo de obras que passou a ter como objetivo recontar toda a estória do Graal, desde as origens na paixão de Cristo até a completa realização da busca do Santo Vaso pelo cavaleiro eleito. “
( Heitor Magale; Introdução in A Morte do Rei Artur/ Anônimo; tradução Heitor Magale/ SP: Martins Fontes: 1992 ( coleção Gandhãra); p. 10.
Um resumo satisfatório de tão rico texto seria inútil, o que me faz apenas destacar alguns pontos e questões que nem de longe o esgotam mas que particularmente me interessam. Assim sendo, cabe dizer que, embora produto de uma cristianização mais sistemática da matéria da Bretanha, ainda é possível perceber nesta narrativa alguma tensão entre o imaginário pagão e cristão. Basta invocar por exemplo o confuso destino do Rei Arthur. Em seus últimos momentos Artur aparece em companhia do cavaleiro Gilfrede que, a seu pedido, devolve, mesmo que relutante, Excalibur a Dama do lago. No momento seguinte o mesmo cavaleiro, vale ressaltar, após a “maravilha” de uma forte e repentina chuva, testemunha o rei ser levado pelas fadas lideradas por Morgana em uma nau. Em um segundo momento, entretanto, o mesmo Gilfrete localiza uma capela negra onde encontra surpreendentemente o túmulo do rei. Justapõem-se, assim dois destinos na narrativa oriundos certamente de diferentes fontes e versões utilizadas na composição do texto. O fato é que tal contradição ganha uma dimensão significativa na medida em que um desfecho “pagão” aparece contraposto a intencionalidade “cristianizadora” representada pelo enterro cristão do rei.
Entretanto, a mais rica e significativa referência pagã na obra é certamente a aparição da deusa Fortuna as vésperas da trágica batalha:
“ ...O rei deitou-se em sua tenda acompanhado apenas de seus camareiros. Depois que dormiu, pareceu-lhe que uma dama vinha à sua presença, a mais bela, como nunca tinha visto no mundo, que o levantou da terra e o levou a mais alta montanha que nunca vistes, lá assentou-o sobre uma roda. Naquela roda havia assentos, dos quais uns subiam e outros desciam, o rei observava em que lugar da roda estava sentado e via que seu assento era o mais alto. A dama lhe perguntava:
-Artur, onde estás?
-Senhora, disse ele, estou numa roda alta, mas não sei qual é.
-è , disse ela, a roda da Fortuna.
Então perguntou-lhe:
-Artur, o que vês?
-Senhora, parece-me que vejo todo o mundo.
-É verdade, disse ela, tu o vês; não há muita coisa de que não tenhas sido senhor agora; e de todo circulo que vês foste o mais poderoso rei que já existiu. Mas tal é o orgulho terreno, que não há ninguém, por mais alto que esteja, a quem não convenha cair do poder do mundo.
Então o pegava e o estrebuchava a terra tão vilmente, que ao cair, parecia ao rei Artur que estava todo quebrado e que perdia toda a força do corpo e dos membros.”
(A Morte do Rei Artur/ Anônimo; tradução Heitor Magale/ SP: Martins Fontes: 1992 ( coleção Gandhãra); p. 204 et seq.)
Heitor Magale, na introdução que faz para sua primorosa tradução em português, assim a apresenta a obra, situando-a dentro do ciclo arthuriano:
“A morte do rei Artur é um romance do seculo XIII atribuído, em seu próprio manuscrito, a Gautier Map e constitui-se no último livro da primeira prosificação ou Vulgata do conhecido Ciclo Arturiano. Antes dessa prosificação, a matéria havia sido tratada em romances em verso e em textos latinos em prosa. No século XII, quando Chrétien de Troyes estava compondo seus romances em verso, a prosa era praticamente reservada para traduções do latim, comentários ou paráfrases de textos sagrados, particularmente sermões. No século XIII, a prosa tornou-se veículo das crônicas em vernáculo. Quando aconteceu de autores principiarem a transformar em prosa os romances arturianos em verso, por volta de 1210, os textos acabaram por revelar-se mais históricos e religiosos. O foco mudou da cavalaria cortês para a busca do Graal e a matéria organizou-se num ciclo de obras que passou a ter como objetivo recontar toda a estória do Graal, desde as origens na paixão de Cristo até a completa realização da busca do Santo Vaso pelo cavaleiro eleito. “
( Heitor Magale; Introdução in A Morte do Rei Artur/ Anônimo; tradução Heitor Magale/ SP: Martins Fontes: 1992 ( coleção Gandhãra); p. 10.
Um resumo satisfatório de tão rico texto seria inútil, o que me faz apenas destacar alguns pontos e questões que nem de longe o esgotam mas que particularmente me interessam. Assim sendo, cabe dizer que, embora produto de uma cristianização mais sistemática da matéria da Bretanha, ainda é possível perceber nesta narrativa alguma tensão entre o imaginário pagão e cristão. Basta invocar por exemplo o confuso destino do Rei Arthur. Em seus últimos momentos Artur aparece em companhia do cavaleiro Gilfrede que, a seu pedido, devolve, mesmo que relutante, Excalibur a Dama do lago. No momento seguinte o mesmo cavaleiro, vale ressaltar, após a “maravilha” de uma forte e repentina chuva, testemunha o rei ser levado pelas fadas lideradas por Morgana em uma nau. Em um segundo momento, entretanto, o mesmo Gilfrete localiza uma capela negra onde encontra surpreendentemente o túmulo do rei. Justapõem-se, assim dois destinos na narrativa oriundos certamente de diferentes fontes e versões utilizadas na composição do texto. O fato é que tal contradição ganha uma dimensão significativa na medida em que um desfecho “pagão” aparece contraposto a intencionalidade “cristianizadora” representada pelo enterro cristão do rei.
Entretanto, a mais rica e significativa referência pagã na obra é certamente a aparição da deusa Fortuna as vésperas da trágica batalha:
“ ...O rei deitou-se em sua tenda acompanhado apenas de seus camareiros. Depois que dormiu, pareceu-lhe que uma dama vinha à sua presença, a mais bela, como nunca tinha visto no mundo, que o levantou da terra e o levou a mais alta montanha que nunca vistes, lá assentou-o sobre uma roda. Naquela roda havia assentos, dos quais uns subiam e outros desciam, o rei observava em que lugar da roda estava sentado e via que seu assento era o mais alto. A dama lhe perguntava:
-Artur, onde estás?
-Senhora, disse ele, estou numa roda alta, mas não sei qual é.
-è , disse ela, a roda da Fortuna.
Então perguntou-lhe:
-Artur, o que vês?
-Senhora, parece-me que vejo todo o mundo.
-É verdade, disse ela, tu o vês; não há muita coisa de que não tenhas sido senhor agora; e de todo circulo que vês foste o mais poderoso rei que já existiu. Mas tal é o orgulho terreno, que não há ninguém, por mais alto que esteja, a quem não convenha cair do poder do mundo.
Então o pegava e o estrebuchava a terra tão vilmente, que ao cair, parecia ao rei Artur que estava todo quebrado e que perdia toda a força do corpo e dos membros.”
(A Morte do Rei Artur/ Anônimo; tradução Heitor Magale/ SP: Martins Fontes: 1992 ( coleção Gandhãra); p. 204 et seq.)
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