domingo, 19 de agosto de 2007

A ORIGEM DOS SIMBOLOS E DA CONSCIÊCIA HUMANA: BREVE HIPÓTESE DE PESQUISA



Pode-se dizer que a capacidade reflexiva ou simbólica desenvolveu-se já nos primórdios da humanidade, ao que parece, através da justaposição de um fluxo autônomo de imagens e associações primárias com a experiência/estímulo representadas pelo mundo natural.
Ambos associam-se ao impulso instintivo do homem para adaptar-se ao meio circundante garantindo a própria sobrevivência. Desde o inicio, portanto, a consciência, mesmo em sua forma rudimentar, funcionava como o elemento mediador entre dois universos psiquicamente percebidos: o inconsciente e o consciente como matéria.
Como bem nota MIRCEA ELIADE:


“ O mundo imaginário criado e continuamente enriquecido pela intimidade com a matéria deixa-se apreender de maneira insuficiente nas criações figurativas ou geométricas das diferentes culturas pré-históricas. Mas esse mundo ainda nos é acessível nas experiências da nossa própria imaginação. È principalmente essa continuidade ao nível da atividade imaginária que nos permite “compreender” a existência dos homens que viveram nessas épocas longínquas. Mas, ao contrário do homem das sociedades modernas, a atividade imaginária do homem pré- histórico possuía uma dimensão mitológica. Uma quantidade considerável de figuras sobrenaturais e de episódios mitológicos, que vamos encontrar nas tradições religiosas posteriores, representam muito provavelmente “descobertas” das idades da pedra.” ( ELIADE, Mircea História das Crenças e das Idéias Religiosas. Tomo I, Volume I, pg.54-55.)


Embora seja obvio o valor do desenvolvimento da confecção de ferramentas de pedra, objetos de osso, cerâmica e vestes de pele de animais para o advento da civilização, como procura salientar o autor:

“O que é menos óbvio é a importância da atividade imaginária deflagrada pela intimidade com as diferentes modalidades da matéria. Trabalhando com um sílex ou uma agulha primitiva, ligando peles de animais ou tábuas de madeira, preparando um anzol ou uma ponta de flecha, moldando uma estatueta em argila, a imaginação revela analogias insuspeitadas entre os diferentes níveis do real; as ferramentas e os objetos são carregados de inumeráveis simbolismos, o mundo do trabalho – o micro universo que rouba a atenção do artesão durante longas - torna-se um centro misterioso e sagrado, rico de significados.” ( Ibidem; p. 54.)

A imagética simbólica, dentre todas as formas objetivas do homem ser no mundo, é justamente aquela que mais diretamente remete a sua origem inconsciente e obscura nos mais profundos abismos da natureza. O pensamento simbólico expressa uma linguagem imagética e imaginativa que muito antes da palavra e do seu auto-revelar-se já conduzia o homem em sua relação com a matéria e o mundo mediante uma experiência irracional e laboriosa (ou ainda psíquica) com os diversos níveis da realidade concreta.
ELIADE, nos dois fragmentos acima, procura resgatar justamente este momento teleológico e paradoxalmente reflexivo no qual o homem participa e constrói a si mesmo através dos objetos que cria, experimentando, por seu intermédio, aquilo que tradicionalmente conhecemos como “sagrado” ou, em termos de psicologia moderna, como arquétipos. ( Ver nota)
A relação entre psique e matéria, entre imaginação e natureza física, ainda é pouco estudada e satisfatoriamente definida pelo intelecto contemporâneo. Pouco posso aqui falar com alguma segurança sobre este tema extremamente complexo e instigante. Apesar disso, não posso deixar de apontar para o curioso relacionamento íntimo que existe entre o desenvolvimento da consciência e certa apropriação da natureza física pelo homem. Ao lado do conhecimento objetivo do mundo material seria absolutamente cabível colocar um conhecimento irracional, “mágico”, onde o “sagrado” (ou icogniscível) está em profundo intercâmbio com o mundano. JUNG define o encontro entre estas duas dimensões da percepção como uma coincidência entre psique e matéria passível de ser traduzida mediante o conceito medieval UNUS MUNDUS.

Nota:(ELIADE expõe mais precisamente este tema em Ferreiros e Alquimistas ao tecer considerações sobre a mitologia da Idade do Ferro: “... A arte de fabricar ferramentas é de essência sobre-humana, quer seja divina ou demoníaca ( o ferreiro forja também armas mortíferas). Restos de antigas mitologias dos tempos líticos foram provavelmente adicionadas e integradas na mitologia dos metais. As ferramentas de pedra , as clavas, estavam carregadas de uma força misteriosa: batiam, feriam, estilhaçavam, produziam faiscas – tal como um raio. A magia ambivalente das armas de pedra, mortíferas ou benéficas, como o próprio raio, transmitiu-se, ampliou-se com os novos instrumentos forjados em metal. O martelo, sucessor do machado dos tempos líticos, tornou-se o símbolo dos deuses fortes, os deuses da tempestade. Compreendemos então porque os deuses da tempestade e da fecundidade agrária são por vezes imaginados como deuses ferreiros.” (ELIADE, Mircea. Ferreiros e Alquimistas. Lisboa: Relógio D’agua, 1987, p.25) A relação com a matéria, enquanto experiência do mundo e da natureza, é também uma experiência da psique, um jogo de projeções entre o inconsciênte e a consciência que produz um universo de “forças” ou “grandezas” simbólicas que para o homem arcaico transcendem o mundo consciente revelando uma outra realidade que podemos vincular tanto quanto ao espaço do “sagrado” quanto da psique enquanto relação do particular humano com a “transcendência” ou o Self. Neste sentido, o “mundo exterior” compreende além da experiência sensual e física de objetos e fenômenos, um encontro constante com “forças” impessoais e “estranhas” cujos contornos e faces são definidas pelo papel que desempenham na experiência coletiva da produção e reprodução cotidiana da vida humana.)

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