Tive finalmente a oportunidade de ler o Tratado de Ateologia do filosofo Frances Michael Onfray, uma obra de referencia para os debates em curso  sobre o ateísmo contemporâneo . Por ser  ateu talvez fosse de se esperar que eu tivesse uma empatia imediata pela obra ou, pelo menos,  muita boa vontade com a narrativa filosófica ali oferecida. Entretanto, para quem alguns anos atrás já se deliciou com o risonho Best seller “Deus, um delírio” do biólogo Richard Dawkins, o carrancudo e panfletário  Tratado de Ateologia de Onfray, fede  a retórica religiosa e dogmática, parecendo mais um tratado de “teologia negativa” do que propriamente de algo que poderíamos chamar de ateologia.
Creio que uma breve e superficial comparação entre as duas obras é suficientemente  esclarecedora: De inicio cabe observar que o ponto de convergência entre elas é o fato de que ambas são resultado do debate emergente após os atentados de 11 de setembro de 2001, sobre religião e extremismo.
  Buscando mobilizar os ateus para uma verdadeira cruzada contra o neo fundamentalismo religioso, Dawkins simplesmente nos oferece em Deus , um Delirio,  a possibilidade cientificamente sustentável de um mundo  que não precisa de deus ou deuses como premissa .  Já o tratado de ateologia aqui comentado, fora algumas passagens interessantes, parece  invocar o bom uso do entendimento e da razão contra o obscurantismo da fé e da crença, estabelecendo um maniqueísmo que, extrapolando o bom senso racional,  parece apenas secularizar o “ethos religioso”, prostrar-se diante de um idealizado e venerado  altar propositalmente vazio.
Além disso, suas referencias a França revolucionaria e a tradição franco iluminista ao longo da narrativa parecem no mínimo gratuita retórica nacionalista. Mas nada que surpreenda em um autor francês...
Em poucas palavras, o  ateísmo militante de Onfray já nasce arcaico e, no que diz respeito a sua pretensão de “verdade”, mais se aproxima do  ethos monoteísta que ele combate do que de qualquer alternativa  a crença e a religiosidade.
Pessoalmente,  estou convencido de que a grande novidade do ateísmo contemporâneo, não importa se de inspiração filosófica ou cientifica, é a  possibilidade de estabelecer a “não  crença”  como pressuposto de si mesma,  e não como um dos pólos do falsa antagonismo ciência/religião. Afinal, a indiferença a religiosidade é mais coerente e criativa  do que sua negação  sistemática e dogmática. Principalmente quando consideramos o fato de que vivemos em um “mundo desencantado”, em uma sociedade cada vez mais secularizada, em que o domínio do sagrado revela-se cada vez mais abstrato e insipiente, apesar da nova ofensiva neo fundamentalista.   
Seja lá como for, atualmente até mesmo os mitos religiosos perderam sua "numinosidade", a ponto de serem facilmente dessacralizados e usados em contextos não religiosos como na ótima e clássica comedia do Monthy Python “A vida de Brian” , em  letras de  Heavy Metal e filmes de terror. O maior trunfo do novo ateísmo é que no imaginário contemporâneo a religião já deixou de ser algo realmente importante no plano das valorações coletivas e podemos finalmente viver nossas vidas sem cogitar ou pensar na insólita hipótese metafísica de um deus criador; agora  passível de ser visto   como um mito igual a qualquer outro...  
Por tudo isso, o Tratado de Ateologia de Michael Onfray me parece uma obra retrógada , tão desinteressante quanto  um  manual de catecismo apesar de algumas qualidades.
 não deixo de reconhecer  algum valor em certos aspectos de  sua critica a episteme judaico cristã e aos três monoteísmos. Afinal, a proposta de   construção de uma ética pós cristã  e reinvenção da cultura ocidental  a partir de um acerto de contas com sua matriz teológica não deixa de ser interessante e potencialmente fecunda.
Para terminar, a crítica de Onfray a mitologia cristã, embora não nos ofereça nada de novo, é por vezes bastante competente, como exemplifica a seguinte passagem:
“A construção do mito efetua-se em vários séculos, com penas diversas e múltiplas. Recopia-se, acrescenta-se, altera-se, voluntariamente ou não. No fim das contas, obtém-se um corpus considerável de textos contraditórios. Daí o trabalho ideológico que consiste em extrair  dessa soma matéria para uma história unívoca. Consequência: conservam-se os evangelhos considerados verdadeiros, descartam-se os que atrapalham  a hagiografia ou a credibilidade do projeto. Daí os sinópticos e apócrifos. Até mesmo os escritos  intertestamentários aos quais  os pesquisadores atribuem um estranho status de extraterritorialidade metafísica.
Jesus vegetariano ou ressuscitando um galo cozido num banquete? Jesus menino estrangulando passarinhos para poder fazer bonito ressuscitando-os ou dirigindo o curso dos riachos pela voz, modelando pássaros de argila e transformando-os em aves reais, fazendo outros milagres antes dos dez anos de idade?  Jesus curando as mordidas de víboras ao soprar  nos lugares em que enfiaram as presas? O que fazer do falecimento de seu pai Jose aos cento e onze anos? E do  de sua mãe  Maria? De Jesus rindo as gargalhadas? E tantas histórias contadas em um milhão de páginas de escritos apócrifos cristãos. Porque foram descartadas? Porque não permitem um discurso bastante unívoco... Quem constitui esse corpus e decide sobre o cânone? A Igreja, seus concílios e seus sínodos no final do sec. IV.
No entanto essa desnatação não impede um número incalculável de contradições e inverossimelhanças no corpo do texto dos evangelhos sinópticos. Um exemplo:  segundo João, o pedaço de madeira sobre o qual os juízes escrevem o motivo da condenação- o titulus- é pregado na madeira da cruz, acima da cabeça de Jesus; segundo Lucas, ele se encontra em torno do pescoço do supliciado; Marcos, impreciso, não permite uma definição... Nesse titulus, comparando-se os textos de Marcos, Mateus, Lucas e João, o texto diz quatro coisas diferentes... A caminho do Gólgota, Jesus carrega sua cruz sozinho, diz João. Por que então os outros acrescentam que Simão de Cirene o ajudava? Segundo este ou aquele evangelho Jesus aparece post mortem para uma som pessoa, para algumas ou para um grupo... E essas aparições ocorrem em lugares diferentes... Seria interminável apontarmos esse tipo de contradição no próprio texto dos evangelhos no entanto  estabelecidos pela Igreja oficial como fabricação unívoca de um único e mesmo mito.
Além das contradições, identificam-se também inverossimelhanças. Por exemplo, a conversa verbal entre o condenado a morte e Pôncio Pilatos, governador de alto escalão do Imperio Romano. Além de que num caso como esse   o interrogatório nunca era conduzido pelo chefe mas por seus subordinados, é difícil imaginar Pôncio Pilatos recebendo Jesus que ainda não é Cristo, nem o que a história fala dele- uma estrela planetária. Na época, ele pertence  apenas aos de direito comum, como tantos outros nas cadeias que ocupa. Pouco provável, portanto,  que o alto funcionário digne-se a conversar com uma pequena caça local. Além do mais, Poncio Pilatos fala latim e Jesus aramaico. Como dialogar da maneira como dar a entender o evangelho de João, diretamente, sem interprete, tradutor ou intermediário? Fabulações...”

    Michel Onfray. Tratado de Ateologia:  Fisica da Metafisica. tradução de Monica Staher, SP: Martins Fontes, 2007,    Pg.107-108    
Trata-se de uma leitura realmente indispensável aos interessados na cada vez mais complexa e plural cultura contemporânea e suas perspectivas mais ousadas...