sexta-feira, 21 de novembro de 2008

CRÔNICA RELÂMPAGO XLI


Estou decididamente entre aqueles que pensam que a conquista da panacéia de um mundo de algum modo melhor ou perfeito seria um verdadeiro desastre, a doentia materialização de qualquer versão de felicidade coletiva arbitrariamente concebida por alguns e imposta a todos em ilusões de universalismos.
Afinal, existem potencialmente tantos mundos perfeitos quanto pessoas no mundo e nenhuma utopia poderia ser uma representação unânime de uma realidade ideal.
A verdade é que não concebo outra dinâmica para o existir coletivo do homem que não passe pela imperfeição e o conflito, onde não existam injustiças, crimes, dramas pessoais, desassossegos de toda natureza e incertezas quanto ao dia seguinte. De outra forma não seriamos humanos, pois se existe algo que possamos definir como humanidade, uma de suas premissas é certamente não se definir pelo primado de virtudes idealizadas ou imperativos categóricos. Não existe, em outros termos, um “bem” ou um “mal” pré determinados entre os quais apenas temos de escolher.
Aliais, fazer escolhas é diferente de dar respostas; essencialmente o que fazemos o tempo todo é formular respostas aos conflitos e problemas cotidianamente vividos a partir dos parcos recursos da consciência, respostas estas que não são pré determinadas, são construções, elaborações que se fazem em nós no calor das emoções, acontecimentos e atos. Quanto mais e melhor somos capazes de lidar com nos mesmos e com os outros, com as desarmonias e conflitos inerentes a existência, menos somos vitimas da ditadura de nossas certezas e sonhos infantis de realidades perfeitas...

PHOTOGRAPHY

Algumas fotografias
São mais que o revelar-se
De um momento capturado,
Dizem mais que a imagem estática,
Prisioneira de eternidades,.
Guardam algo vivo
No dizer de cores,
Rostos e paisagens.

Algumas fotografias
São essencialmente
O próprio tempo presente,
A janela de um AGORA
Do qual nos perdemos
Nas ilusões do tempo.

domingo, 16 de novembro de 2008

C. G. JUNG E A VIDA APÓS A MORTE


A obra epistolar de C. G. Jung não é de forma alguma menos interessante do que seus trabalhos científicos. Pelo contrário, nos permite melhor compreende-los, o que torna justificável a reprodução aqui de uma de suas missivas que aborda especificamente a posição do autor em relação a um tema espinhoso como a vida após a morte... Não temos aqui a posição de um místico, mas do adepto de uma imagem de ciência que transcende o mito da própria ciência através do racional, questionando toda noção de verdade...

“A uma destinatária não identificada
Luxemburgo
30.05.1960


Minha idade avançada e a necessidade de repouso me fazem evitar as muitas visitas e por isso devo limitar-me o quanto possível a respostas por cartas.
Quanto a sua pergunta sobre a vida após depois da morte, posso responder-lhe tão bem por escrito como oralmente. Na verdade, esta pergunta ultrapassa a capacidade da mente humana, que nada sabe dizer que vá alem da mesma. Além disso, qualquer afirmação cientifica é apenas provável. Só é possível formular a pergunta assim: existe alguma probabilidade de a vida continuar após a morte? É fato que- como todos os nossos conceitos- também o tempo e espaço não são axiomas, mas basicamente verdades estatísticas. Evidencia-se assim também que a psique não esta sujeita até certo ponto a estas categorias. Ela é capaz de, por exemplo, de percepções telepáticas e precognitivas. E enquanto isso, ela esta num continuum, fora do espaço e do tempo. Pode-se esperar então que ocorram fenômenos post-mortem que devem ser considerados autênticos. A relativa raridade desses fenômenos sugere em todo caso que as formas de existência dentro e fora do tempo estão de tal forma separadas, que a ultrapassagem desses limites apresenta as maiores dificuldades. Mas isto não impede que paralelamente à existência dentro do tempo corra uma fora do tempo, isto é, que existamos simultaneamente mos dois mundos, tendo as vezes algum pressentimento disso. Mas o que está fora do tempo não pode mudar mais, segundo nossa concepção. Isto tem relativa eternidade.
Talvez a senhora conheça ,meu ensaio “Seele und Tod” no volume Winklichkeit der Seele. Para fundamentação cientifica chamo sua atenção para meu escrito “Sincronicidade: Um principio das conexões acausais” em OC, vol.VIII, p. 437.
Estas são as minhas idéias principais que, oralmente, tembém não exporia de outra maneira.
Com elevada consideração
Sinceramente seu
( C. G. Jung). “

( Cartas de C.G. Jung: Volume III, 1956-1961/ editado por Aniela Jaffé em colaboração com Gerhard Adler; [tradução de Edgar Orth].- Petrópolis: Vozes, 2003, p. 256-257)

O MAIS BANAL E TRANSFORMADOR DA VIDA


Amo o contraste
Entre o azul profundo do céu
E a rua em frenético movimento
De pessoas e coisas
Banhadas por um sol brando
De tarde em morte e serenidade.

Amo o vento macio,
Frio e leve,
Que embala as pequenas sensações
Dos mais simples atos
Dos fatos ordinários de simplesmente viver.


Amos sem sentimento
O ócio profundo
Que foge ao tempo
E se perde
No acontecer breve
De um pequeno e superficial momento
Sem grandes acontecimentos.

sábado, 15 de novembro de 2008

CONHECIMENTO CIENTIFICO E SUBJETIVIDADE

A especificidade do discurso científico é definida tanto a partir de critérios como coerência, consistência, originalidade e objetivação, quanto pelo paradigma da alteridade. O estatuto de verdade, ou a construção do consenso científico, pressupõe persuasão e legitimação coletiva. Neste sentido, sua premissa básica é a universalidade.
Todavia seria um grave equívoco reduzir o discurso científico a mera combinação de critérios internos e externos pois tanto no que diz respeito a sua estrutura e a sua finalidade, o que predomina é o esforço subjetivo de um pesquisador individual que procura traduzir sua experiência singular em termos objetivos ou socialmente estabelecidos por convenção. Não se trata de assimilar e utilizar uma “técnica” pré-determinada e por si mesma inequívoca. Diante da pluralidade do saber científico nas ciências sociais, no que diz respeito a metodologia e referencias ideologicas, nada mais natural do que reconhece-lo como um complexo jogo de opções e escolhas que pré condicionam o olhar de qualquer pesquisador.
Não seria incorreto afirmar que o estudo dos métodos de pesquisa no campo da epstemologia conduz paradoxalmente tanto a uma afirmação quanto um questionamento do estatuto do conhecimento formal. Cabe lembrar que a partir das primeiras décadas do século XX as chamadas ciências humanas, ou como se prefere hoje, ciências sociais, no que diz respeito ao método e aos critérios de verdade, começaram a distanciar-se abertamente dos modelos tomados de empréstimo das ciências naturais.
Desta forma, gradativamente surgiram inúmeras possibilidades novas de legitimação e representação do discurso científico. Basta pensar na contribuição de tendências do pensamento científico como as representadas pela fenomenologia, a hermeneutica ou a semiótica e, no que diz respeito mais especificamente as ciências históricas, a profunda redefinição do conceito de fontes e documentos iniciada pela chamada Escola dos Analles.
Como bem observa LUCIEN GOLDMAN,
“As ciências históricas e humanas não são pois, de uma parte, como nas ciências físico químicas, o estudo de um conjunto de fatos exteriores aos homens, o estudo de um mundo sobre o qual recai sua ação. São ao contrário a análise dessa própria ação., de sua estrutura, das aspirações que a animam e das alterações que sofre.”[1]

Desta subjetividade elementar que define o objeto das ciências humanas, ou seja, o próprio universo humano em suas tantas manifestações simbólicas como a cultura, a sociedade, a religião, a arte, o direito, etc. deduz-se a inadequação da lógica formal como fundamento metodológico da construção do conhecimento científico.
Recorrendo novamente a GOLDMAN é justo lembrar que,
“O processo do conhecimento científico é ele próprio um fato humano, histórico e social; isso implica, a identidade parcial entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Eis porque o problema da objetividade se coloca diferentemente nas ciências humanas e na física ou na química.”[2]

Em outras palavras, entre a pesquisa no campo da química ou da fisiologia e a pesquisa no campo das ciências sociais há uma diferença de natureza que demonstra claramente os limites do método empírico dedutivo e a chamada lógica formal, ainda hoje, apesar de muitas resistências, adotada no campo das ciências sociais de forma indiscriminada e mecânica. Neste ponto GALVANO DELLA VOLPE nos permite ir um pouco mais longe através de sua crítica ao positivismo lógico. Segundo ele,
“ A principal dificuldade em fazer-se uma idéia adequada e fornecer um juizo crítico completo da lógica formal moderna ou lógica formalizada (=formalista), propugnada pelo positivismo lógico, reside na sua natureza una-dúplice de teoria do pensamento e teoria da linguagem: pelo que, quando se encarou a primeira teoria e se demonstrou a sua capacidade para valer como lógica tout court ou lógica filosófica ( como se vê ad oculos no problema por resolver da lei científica), resta enfrentar a Segunda enquanto semiótica (Carnap) demasiado abstrata ou parcial, que, na sua peculiar obsessão pela linguagem “correta” ou linguagem da “verdade”, dogmatiza uma linguagem meramente técnica(de tipo matemático), falhando como semiótica(ou semântica) geral, verdadeiramente filosófica.” [3]

O equacionamento da linguagem técnica e a interpretação, problemática que nos é aqui muito bem apresentada pelo autor, é um dilema que vivenciamos inevitavelmente quando nos lançamos a árdua tarefa de formular um projeto científico e desenvolver uma pesquisa. Não existem no que diz respeito a isso respostas prontas ou acabadas. Como o próprio conhecimento científico esta é uma questão em eterna construção e reconstrução. Só podemos, de acordo com nossas opções subjetivas, lhes proporcionar as respostas que o nosso presente e nossa referências permitem.

[1] GOLDMAN, Lucien. Ciências humanas e Filosofia. SP: Difusão Européia do Livro, 1967; p.27.
[2] Ibidem
[3] DELLA VOLPE, Galvano. A lógica como ciência histórica. Lisboa: Edições 70; s/d; p.242 et seq.

PÓS IDENTIDADE

A vida corre sem pressa
Pelo abstrato do tempo
Dizendo-se em dias e noites.

Segue aleatoriamente
Pelo acumulo dos fatos
Enquanto persigo
A mim mesmo
No não ser dos pensamentos,
No não saber dos sentimentos
Que escapam ao tumulto
Das emoções mais cruas..

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

HANNAH ARENDT: ENTRE A DECADÊNCIA DO ESPAÇO PÚBLICO E INDIVIDUOS EM TEMPOS SOMBRIOS


Considero a coletânea de ensaios HOMENS E TEMPOS SOMBRIOS de Hannah Arendt um de seus livros mais curiosos por nos proporcionar uma valiosa reflexão sobre o lugar do individuo no contexto de decadência do espaço público que, dentre muitas outras coisas, caracteriza nossa contemporaneidade.
A própria autora, no prefacio que faz a obra, elucida o significado dos tempos sombrios a que se refere e que, evidentemente, associa-se a experiência dramática das duas Guerras Mundiais e do totalitarismo
.
“ ... Fui buscar a expressão ao famoso poema de Brecht “Aos que virão a nascer” , que fala da desordem e da fome, dos massacres e dos assassinos, da revolta contra a injustiça e do desespero “ quando só havia injustiça e não revolta”, do ódio legitimo que no entanto nos desfigura, da cólera justificada que nos enrouquece a voz Tudo isso era bem real, uma vez que se passava em público; não era nem segredo nem mistério. E todavia, nem por sombras estava ao alcance de todos os olhos, era difícil ter-se consciência da situação; pois até ao último momento, em que a catástrofe arrastou tudo e todos, ela foi sempre camuflada, não por realidades mas pelos muito eficientes discursos e pelo palavreado de quase todos os representantes oficiais que, ininterruptamente e com as mais engenhosas variantes, iam arranjando explicações para todos os fatos desagradáveis e para todas as preocupações justificadas. Quando pensamos nos tempos sombrios e nas pessoas que neles viveram e se movimentaram, temos que levar em linha de conta esta camuflagem, emanada do “poder estabelecido”- ou do “sistema”, como então se dizia- e por ele difundida. Se a função do domínio público é iluminar a vida dos homens, proporcionando um espaço de aparências onde eles podem mostrar, em palavras e actos, para o melhor e o pior, quem são e o que sabem fazer, então as trevas chegam quando esta luz se apagada pelas “faltas de credibilidade” e pelo “governo invisível”, pelo discurso que não revela aquilo que é, preferindo escondê-lo debaixo do tapete, pelas exortações, morais e outras,k que a pretexto de defender velhas verdades degradam toda a verdade, convertendo-a em uma trivialidade sem sentido.”

( Hannah Arendt. Homens em tempos sombrios. Tradução de Ana Luisa Faria. Lisboa: Relógio D’agua, 1991, p.8 )

Esta é a temática que entrelaça os 11 ensaios da coletânea sobre a biografia de indivíduos que viveram nesses tempos sombrios de séc. XX, com exceção de Lessing, e que são tão diferentes um do outro e, em alguns casos, realmente antagônicos. Afinal Arendt toma por objeto a vida de homens com,o Ângelo Guiseppe Roncalli, Isak Dinesen, Randall Jarrell, Karl Jaspers, Hermann Broch, Walter Benjamin, Bertolt Brechtn e Rosa Luxemburgo.

Uma passagem do ensaio sobre Lissing, que abre o livro, me parece particularmente interessante para apresentar as idéias que perpassam esta coletânea tão original:

“Nada em nosso tempo é mais duvidoso, penso eu, do que a nossa atitude para com o mundo, nada menos garantido do que o acordo, que uma distinção nos impõe e que a sua existência afirma, com aquilo que se manifesta em público. No nosso século até mesmo o gênio só se conseguiu desenvolver em conflito com o mundo e o domínio público, embora naturalmente encontre, como sempre fez, a sua forma própria de acordo com o seu público. Mas o mundo não é a mesma coisa que as pessoas que o habitam. O mundo está entre as pessoas, e este espaço-entre é hoje- muito mais do que os homens, ou mesmo o homem, ao contrário do que muitas vezes se pensa- o objeto das maiores preocupações e o domínio das convulsões mais evidentes em quase todos os paises do globo. Mesmo onde o mundo ainda se encontra numa relativa ordem, ou é mantido numa relativa ordem, o domínio público perdeu a capacidade de iluminação que originalmente fazia parte de sua natureza própria. São cada vez mais os habitantes dos paises do mundo ocidental, que desde o declínio do mundo antigo considerou a liberdade em relação à política como uma das suas liberdades fundamentais, a exercer esta liberdade, retirando-se do mundo e das suas obrigações para com ele. Este alheamento do mundo não prejudica necessariamente o indivíduo; até pode permitir-lhe cultivar grandes talentos, elevando-o ao grau de gênio, e por esse desvio o tornando uma vez mais útil ao mundo. Mas com cada um desses alheamentos verifica-se uma perda quase palpável para o mundo; o que se perde é o espaço- entre particular e geralmente insubstituível que deveria ter-se criado entre esse individuo e seus semelhantes.”

( Hannah Arendt. Homens em tempos sombrios. Tradução de Ana Luisa Faria. Lisboa: Relógio D’agua, 1991, p. 12-13 )

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

LIFE II

Vivo apenas
Do dia, da noite e do acaso
Nos labirintos da embriagues
De um céu negro e distante.

Vivo na violência do vento,
No corpo das tempestades
Que procuram madrugadas
Nos intervalos da vida.

Vivo da violência
De um encanto de existências
Cravadas no peito
Da própria e cotidiana
mera realidade.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

SOBRE A UTOPIA de T. MORE


Publicado originalmente em 1516, justamente um ano antes da eclosão da reforma luterana, A Utopia de More permanece ainda hoje um texto um tanto quanto enigmático. Responsável pela invenção da palavra Utopia, não raramente é vitima de leituras anacrônicas e “ideolocizantes” sobre seu significado enquanto “critica social e política” à Inglaterra dos Tudors através da idéia de uma sociedade ideal comunista.
A Utopia de More insere-se, entretanto, no panorama humanista e renascentista, constitui um esforço de conciliação entre a cultura clássica e medieval mediante a um reequacionamento entre o paganismo pagão da antiguidade com o cristianismo medieval, o que se expressa, por exemplo, na valorização do epicurismo presente na obra, mesmo que contraditoriamente diluído por certo estoicismo.
A republica de Utopia expressa o desejo do autor por uma reforma da vida social e política da Europa do séc XVI como uma resposta a então evidente crise da cristandade ocidental.
Para o historiador Carlo Ginzburg, em uma leitura realmente original construída através de sua micro- história, conforme sugerem alguns indícios pouco observados na obra, a Utopia de More insere-se em uma tradição literária satírica que remonta a Luciano de Samósata.
Em suas próprias palavras:

“Greenblatt decerto tem razão em sustentar que a maioria dos interpretes deixou escapar “ a sensação de perspectivas incompatíveis” que tem tamanha importância no livro de More. Mas esse elemento formal, por importante que seja, pode ser identificado como o núcleo do livro?
A abordagem que proponho ultrapassa esse dilema, uma vez que leva em conta as “perspectivas incompatíveis” que Greenblatt ressalta, como também o “complexo enquadramento” que os interpretes debateram longamente. No centro deste último debate está a tese de Hexter sobre o “parágrafo fora do lugar”, segundo a qual o parágrafo do livro primeiro da Utopia que promete uma descrição da ilha seria uma espécie de “remedo”, indício mal escondido de uma fase anterior do projeto de More, visto que a descrição só comparece no livro segundo. No entanto, quando se lê a Utopia no contexto da tradição luciânica, tão dada a contradições lógicas e textuais, a tese de Hexter parece muito frágil. “Mas contarei as minhas aventuras no outro continente no próximo livro”, lê-se no fim do segundo e último livro de Uma história verdadeira, de Luciano. “A maior mentira de todas”, comentou secamente um escriba grego, à margem da cópia.
Outro estudioso, G. M. Logan, declarou que a influência de um escritor satírico como Luciano seria incompatível com as passagens “absolutamente sérias da descrição de Utopia”. O livro de More, adverte Logan, “apesar de ser escrito de forma arguta e indireta, é uma contribuição séria à filosofia política. Mas os elementos sérios e cômicos da Utopia serão tão opostos assim? Ao rejeitar esse dilema, Thompson perguntou-se: “ Não poderíamos ficar com as duas alternativas?Cero, mas como? O que está em pauta é a relação entre as duas faces do livro. “Apesar de ser escrito de forma arguta e indireta”, escreveu Logan; eu não diria “apesar”, e sim “por ser escrito”. Como se sabe, More começou a escrever pelo que viria a ser o livro segundo, isto é, a descrição de Utopia; em seguida, acrescentouo livro primeiro, a descrição da Inglaterra. Tenho a impressão de que, neste caso, post hoc e popter hoc coincidem. Os paradoxos de Luciano devem ter descortinado a More um campo de possibilidades que modificou o seu projeto original. Hipóteses extravagantes e puramente imaginárias levaram-no a contemplar a realidade de um ponto de vista insólito, a fazer perguntas obliquas à realidade. O que aconteceria se ( como imaginou Luciano) as várias filosofias fossem a leilão? O que aconteceria se a propriedade privada fosse abolida? Antigos rituais de inversão como as saturnais levaram More a imaginar uma sociedade fictícia, na qual ouro e a prata eram usados para fabricar penicos e os embaixadores estrangeiros carregados de correntes de ouro, por engano, eram tidos por escravos. Os mesmos rituais de inversão, ajudaram-no a entrever pela primeira vez uma realidade paradoxalmente às avessas: uma ilha em que as cabras devoravam os homens.”

Carlo Ginzburg.O Velho e o Novo Mundo vistos de Utopia, in Nenhuma ilha é uma ilha. Quatro Visões da literatura Inglesa/ tradução de Samuel Titan Jr. SP: Companhia das letras, 2004, p. 41-42

LITERATURA INGLESA XXXVIII


Alfred Edward Mason (1865-1948) no cenário da literatura britânica, é um nome relativamente pouco conhecido, embora tenha escrito cerca de trinta peças literárias. A mais conhecido dentre elas é o romance The Four Feathers ( As Quatro Penas Brancas) originalmente publicado em 1902 e, diga-se de passagem, imortalizado por cinco versões cinematográficas, dentre as quais a mais popular e bem sucedida foi a de 1939 dirigida por Zaitan Korda.

Este belo romance nos oferece um significativo panorama da paisagem cultural correspondente ao mundo da antiga aristocracia britânica e seu ethos militarista, rigidamente hierárquico e vinculado à afirmação do império colonial britânico.
Ao longo da narrativa articulam-se em torno da questão da honra uma serie de conflitos de valores que basicamente contrapõem o individuo aos crivos impostos pelo meio sócio-cultural. Associado ao tema da honra encontra-se, por exemplo, a questão da relação entre gêneros, com destaque para a problemática do amor entre homem e mulher e o próprio lugar da mulher na sociedade.

Resumindo o enredo, a personagem central, o jovem Harry Fevershun, ao deixar o regimento a que servia as vésperas de sua partida para atuar em um conflito no Sudão, é acusado por seus principais amigos de infâmia e covardia, recebendo no dia de seu noivado três penas brancas simbolizando sua desonra. A estas junta-se uma quarta oferecida por sua própria noiva. Com a desconstrução da sua opção por uma vida domestica e calma, Harry lança-se em segredo a uma perigosa e árdua aventura pela Irlanda, Sudão e Egito, para provar seu valor e recuperar sua honra.