Hoje costuma-se falar do fenômeno do esvaziamento das individualidades e da crise do individuo, fenômenos interligados que refletem um processo de desestruturação e reestruturação das relações sociais fundado, dentre outros fatores, no profundo impacto das novas tecnologias digitais sobre os hábitos coletivos e a própria maneira de codificação de nossas individualidades em um contexto de deslocamento dos papeis sociais tradicionais norteados por uma referência comunitária de organização social.
As sociabilidades deixam assim hoje em dia de serem concêntricas e homogenizantes se pulverizando em uma pluralidade de estratégias de construção de identidades, cuja inorganicidade e a exacerbada afirmação da microfísica das individualidades se tornaram definitivamente hegemônicas.
Pode-se dizer que, embora já em gestação desde o advento da sociedade de massas no final do sec. XIX e inicio do século XX, foi apenas a partir da segunda metade dos novecentos que tal processo ganhou nas sociedades e culturas ocidentais uma dimensão realmente nova que deslocava definitivamente as “tendências comunitárias” de agregação social como referencia central de codificação do real.
Obviamente podemos rastrear tal processo de construção da autonomia do indivíduo frente as codificações comunicarias de mundo e realidade desde o inicio da era moderna, marcada por fortes tensões culturais como os descobrimentos, as reformas protestantes e as consequente “guerra de religiões”, mas até então e, pode-se dizer, de modo diferente ainda hoje, as tendências a “desorganização de todo estabelecido” tendem a reorganizar-se sobre alguma variação da “velha ordem”.
Importante considerar que, tal como aqui concebido, o conceito de individuo não se associa a qualquer noção de “a-sociabilidade”, como sugerem alguns estereótipos ideológicos clássicos. A individuação pressupõe uma estratégia de autoconsciência e adaptação a uma realidade coletiva marcada pela instabilidade e enfraquecimento das representações coletivas tradicionais que acabam por exigir um grau de autonomia e iniciativa maior de seus membros como atores sociais.
Mas pode-se também dizer que o fenômeno da “indiferença” ou do “narcisismo” contemporâneo atribuídos ao individualismo são na verdade a contrapartida de uma sociedade massificada, onde a despersonificação e a universalização através do consumo exigem um ethos comportamental antipático as sociabilidades comunitárias.
Ao contrario dos conservadores defensores de um mundo sustentado por meta narrativas e valores universais, não creio que uma re-coletivização da sociedade seja possível ou se quer desejável. Talvez o próprio conceito de sociedade tenha se esgotado e estejamos vivendo uma nova forma de interação social e coletiva fundada na justaposição de sociabilidades diversas. Seja como for, a possibilidade do individuo singular reinventar –se em codificações de mundo elaboradas exclusivamente ao sabor de seus mais preciosos caprichos parece-me uma fecunda possibilidade de futuro.