No rastro da revolução cientifica dos sec. XVI e XVII a cultura européia vivenciou uma reinvenção da relação entre o homem e o mundo que permanece em curso até os dias de hoje. Afinal, se superamos a ideia de uma natureza portadora de significados, tão em voga até o séc. XVIII, ainda nos conformamos a qualquer senso comum.
A maioria de nós vive distante das transformações que definem nossa própria época no que ela tem de mais contemporâneo... Somos todos vítimas de alguma ficção elementar de realidade configurada pelas inercias do passado que nos é legado pelo nossos ancestrais imediatos.
Gostaria de ilustrar o fato com uma provocante citação de Jean Starobinski em seu clássico ensaio sobre Montesquieu:
“A boa nova que as Cartas persas traziam para os leitores europeus de 1721 era a da factilidade universal. Os homens são o que seus hábitos, seu clima e sua educação fazem deles. Quando os persas foram a paris perguntando o porquê de cada costume e cada rito, o importante não era a resposta a esse porquê, mas o simples fato de que se possa perguntar porquê. E essa simples questão revela instantâneamente o absurdo das crenças e dos ritos, que só subsistem porque nunca lhes havíamos questionado os motivos. Há nisso um “como se pode ser Frances?”, que responde implicitamente ao “como se pode ser persa?”. E eis o que pode parecer estranho: a prova das máscaras é uma prova da verdade. È preciso introduzir personagens disfarçadas e mascaradas para que a verdadeira natureza dos homens se desmascare na presença delas. Assim, em Cosi fan tutte, a chegada dos noivos disfarçados de senhores orientais, que torna gritante e ridículo dos juramentos e das promessas, revelará a verdade oculta da inconstância; é montando uma comédia que descobrem que a fé jurada seriamente não era senão comedia. Montesquieu faz o mesmo; sua ficção dos persas demonstra que se vive de ficções . O oriente real não tem nada a ver com isso. É um espetáculo que os homens do Ocidente se proporcionaram para libertarem-se dos valores do Ocidente.”
Jean Starobinski. Montesquieu. Tradução de Tomás Rosa Bueno. SP: Companhia das Letras, 1990, p. 59-60