Uma dos melhores momentos da coletânea Beatles e a Filosofia, organizada por Michael Bauer e Steven Baur sob a coordenação de William Irwin é o ensaio “ EU ADORARIA FAZER VOCÊ DESPERTAR: OS BEATLES E A ÉTICA DOS ESTADOS DE CONSCIÊNCIA” by Jere O’Neill Surber.
O autor define de modo sublime e preciso o momento nodal da cultura e mensagem criada pelos Beatles para sua época na seguinte passagem onde nos oferece uma lúcida interpretação do psicodelismo segundo Beatles que nos ajuda a melhor compreender o eco tardio da gravação de Real Love em Ontology e sua profunda contemporâneidade:
“ Quão “normal” é o “estado normal de consciência”?
O àlbum de 1967, Sgt. Pepper’s Lonery Hearts Club Band, com suas técnicas experimentais de gravação, arte e letras psicodelicas, e com o famoso último verso ( “Eu adoraria fazer você dispertar...”) [ “I’d Love to turn you on...”] , foi a primeira inovação, e talvez ainda a mais espetacular, induzida pelas drogas, explicita e em larga escala, dos estados alterados de consciência Seja qual for a verdadeira história por trás da canção, as iniciais da segunda faixa do álbum, “Lucy in the Sky with Diamonds” (LSD), foram entendidas como uma referência à droga por quase todas as pessoas que ouviram o álbum quando do seu lançamento. Um fato menos aparente foi o de que, antes deste álbum que se tornou um marco, de modo especial em Ruber Soul (1965) e Revolver (1966), a banda já começara a explorar estados de consciência além do racional e normativo da percepção lúcida, que dominara por tanto tempo a maior parte da tradição filosófica, oriunda do pensamento de Descartes.
Dois desses estados- aqueles definidos pela memória emocional e o amor intenso-dominaram o primeiro dos dois álbuns, e permaneceriam como temas recorrentes por todo o período ativo dos rapazes enquanto membros da banda ( e mesmo depois, nas carreiras solo). O próprio título do álbum, Rubber Soul, como a deliberada foto distorcida da banda, sugere o tipo de extensão deformada da consciência, envolvida na tentativa de relembrar acontecimentos de um passado longínguo, ou de ver a outra pessoa “através dos olhos do amor”. De fato, filósofos existencialistas como Martin Heidegger (1889-1976) e Jean Paul Sartre ( 1905-1980), décadas antes, haviam proposto que a consciência , em sua estrutura, “está fora” (uma tradução literal de “existe”), ou “transcende a si mesma” em direção a algo que não a si mesma, literalmente a abandonando o estado o estado privilegiado “normal”, autocontido e voltado para o presente, de Descartes. Os dois temas se entrelaçam naquela que é, provavelmente, a canção mais popular do álbum, “In My Life”, em que memórias de tempos e lugares do passado são comparados a um amor presente, os dois temas se juntam para formar um cenário de familiar de “ estados alterados alterados da consciência”, refletindo a distorção visual da capa do álbum.
O álbum seguinte, Revolver, vai muito mais além e na mesma direção. Aos estados de memória e amor são acrescidos o sono ( “I’m Only Sleeping”) e um tipo de visão cósmica básica ( “Here, There, and EWverywhere”). Mas a faixa mais notável, a ultima, “Tomorrow NeverKnows”, anuncia o que aparecerá de maneira aberta no próximo álbum ( Sgt. Pepper). Embora quase não notado na época ela é, na verdade, baseada em um texto de A Experiência psicodélica, do Dr. Timothy Leary, e convida o ouvinte a desligar a mente, relaxar e seguir a corrente” [ “turn off your mind, relax and float downstream”]. Resumindo esse período da obra dos Beatles e prevendo o seguinte, a canção termina: “Então jogue o jogo ‘Existência’ até o fim, do começo, do começo” [ “So play the game ‘Existence’ to the end, Of the beginning, of the beginning”].
( EU ADORARIA FAZER VOCÊ DESPERTAR: OS BEATLES E A ÉTICA DOS ESTADOS DE CONSCIÊNCIA” by Jere O’Neill Surber in Beatles e a Filosofia: Nada do que você pensa não pode ser pensado. Coletânea de Michael Baur e Steven Baur/ tradução de Marcos Malvezzi SP: Madras, 2007, p. 161-167 )