“Os conceitos da vida e do mundo que chamamos "filosóficos" são produto de dois fatores: um, constituído de fatores religiosos e éticos herdados; o outro, pela espécie de investigação que podemos denominar "científica", empregando a palavra em seu sentido mais amplo. Os filósofos, individualmente, têm diferido amplamente quanto às proporções em que esses dois fatores entraram em seu sistema, mas é a presença de ambos que, em certo grau, caracteriza a filosofia.”
Bertrand Russel- A Filosofia entre a religião e a Ciência in História da Filosofia Ocidental
Nascido no País de Gales, o filósofo Bertand Russel (1872-1970) merece sem sombra de duvidas um lugar privilegiado em qualquer panorama da literatura de língua inglesa. Não por acaso recebeu o Nobel de literatura em 1950. Embora consagrado no campo da filosofia pelos seus estudos sobre lógica e matemática, ao lado do amigo Aldous Huxley, Russel foi antes de tudo um grande ensaísta e humanista, um típico intelectual do século XX, ou seja, um escritor profundamente atento aos problemas e desafios do seu tempo e embalado por uma demasiada confiança na racionalidade humana. Fato comprovado por sua militância anti-nuclear em tempos de guerra fria inspirada por sua vivencia da barbárie de duas guerras mundiais.
Pretendo aqui apenas comentar um de seus ensaios ainda hoje mais populares: What I Believe.
Alan Ryan, professor de ciências políticas e diretor do New College da Universidade de Oxford, nos oferece na apresentação que faz a obra a seguinte e esclarecedora contextualização:
“ No que acredito foi inicialmente publicado em uma série de livros muito curtos- os editores os chamavam de “panfletos”- intitulados “Today and Tomorrow” ( Hoje e Amanhã). Eram livrinhos sobre assuntos os mais variados: “o futuro das mulheres, guerra, população, ciência, máquinas, moral, teatro, poesia, arte, musica,sexo, etc.” Dora Russel escreveu Hypatia para defender a libertação das mulheres, e Russell escreveu dois panfletos para série, dos quais No que acredito foi o segundo. Dedalus, de J.B.S. Haldane, havia oferecido uma visão otimista do que a ciência faria pela humanidade no futuro; Hussell replicou com Icarus, para mostrar que o filho de Dédalo, aprendeu a voar, mas não a voar de um modo inteligente. Já que a ciência enquanto fruto da inquirição racional do mundo poderia apenas nos dizer como atingir nossos objetivos, era de se esperar que o mais impressionante resultado do avanço científico seria transformar a guerra em um massacre de proporções globais. Se evitássemos tal destino, nós nos veríamos ou entediados à morte- na medida em que a burocracia em larga escala tomou as rédeas do mundo- ou seriamos transformados nas dóceis criaturas imaginadas no Admirável Mundo Novo de Huxley- livro provavelmente inspirado pelo Icarus de Russel-, geneticamente programadas para desempenhar nossos papéis sociais e alimentadas com drogas que conseguiriam realizar qualquer coisa que a eugenia já não o tivesse.”
( Bertrand Hussell. No que acredito/ tradução de André de Godoy Vieira. Porto Alegre: L&PM Editores, 2007, p. 17-18 )
A critica a religião levada a cabo por Hussel em “No que Acredito” fundamenta-se em uma defesa otimista da racionalidade e do desenvolvimento cientifico, adota uma retórica oposta a do seu Icarus, que chama atenção para as possibilidades sombrias desse mesmo desenvolvimento cientifico. Logo a contraposição entre fé e ciência que aqui aparece como premissa desse ensaio, e também é evidente em outros momentos da vasta obra do autor, como por exemplo, em “A conquista da Felicidade” ou “Ensaios Ceticos”, presupõe algo mais do que um mero antagonismo ou dualismo. Na verdade o que está em jogo é um redimensionamento dos sistemas de crenças humanas a partir de uma constatação do quanto o significado da existência e do próprio mundo, para o bem e para o mal, é uma construção humana. È nesse sentido que em dado momento da obra aqui discutida ele afirma:
“....No mundo dos valores, a natureza em si é neutra- nem boa nem ruim, merecedora nem de admiração nem de censura. Somos nós quem criamos valor, e são nossos desejos que o conferem. Desse império somos reis e de nossa realeza nos tornamos indignos se à natureza nos curvamos. Estabelecer uma vida plena cabe portanto a nós, e não natureza- nem mesmo à natureza personificada como Deus.”
( Bertrand Hussell. No que acredito/ tradução de André de Godoy Vieira. Porto Alegre: L&PM Editores, 2007, p. 41 )
A crença de Russell nas potencialidades humanas e no predomínio de uma orientação racional da existência individual e coletiva revela sua grande e generosa aposta, enquanto pensador e intelectual engajado, em um potencial progresso da vida e da sociedade. Considerando, entretanto, os desafios que se apresentam ao destino humano nesse inicio de milênio, é significativo especular quanto à atualidade do pensamento de Russell no que diz respeito ao seu apego a uma positividade da razão e da racionalidade, mesmo que em sua filosofia a razão subordina-se ao desejo como essência da condição humana. Afinal, até que ponto a transfiguração da razão, o deslocamento de todos os valores e referências construídas pelo espírito moderno, não nos lança hoje a incerta aventura de deslocar o humano do centro do seu próprio mundo, a uma superação positiva de todo o humanismo?