segunda-feira, 21 de julho de 2008

ENTRE OS DEUSES E OS HOMENS:O SIGNIFICADO DOS DAIMONS SEGUNDO MARIE LOUISE VON FRANZ



Uma das mais pertinentes reminiscências pagãs presentes no imaginário estabelecido pela mitologia cristã é a imagem do gênio pessoal, de um campo intermediário entre a realidade dos deuses e dos homens. Para a maioria das pessoas sua familialidade enquanto experiência psicológica, dar-se através da ingênua fantasia do anjo da guarda.
Buscando pensar o sentido mais profundo desta imagem arquetipica valho-me aqui de um fragmento de Marie Louise von Franz extraído de uma das palestras que compõem o livro Reflexões da alma: Projeção e Recolhimento Interior na Psicologia de C.G. Jung. Remeto-me assim ao arcaico conceito de daiomai e daimon onde encontramos uma simetria significativa com o conceito de complexos autônomos formulado por Jung e de vital importância para a compreensão de suas formulações. Interessante observar que a obra aqui em questão de Marie Louise von Franz é, antes de tudo, um estudo sobre o fenômeno da transferência e sua retirada, fenômeno que parece caracterizar o desenvolvimento da consciência humana através de mitos e símbolos ao longo de séculos.


“No contexto estrito da alma humana, muitos demônios cananeus e judaicos antigos tornaram-se “espíritos sopro”, que penetrando nos homens podiam produzir sensações, impulsos misteriosos, reações repentinas, etc., mas também uma postura ou uma orientação moral; no Velho Testamento fala-se de um espírito dos desejos ou do ciúme, mas também de um espírito da compreensão e do entendimento. Mesmo funções, como o olfato, a linguagem, o sono, a sexualidade, tem o seu “espírito”.
Na Grécia pré-helenica, os demônios formavam também um coletivo anônimo. A palavra daimon vem de daiomai, que significa algo como “repartir” e designava originalmente uma intervenção divina perceptível por momentos e da qual se ignorava o Deus que a teria praticado, por exemplo, afugentar os cavalos, falhar no trabalho, doenças, loucura, pavor de certos lugares na natureza virgem. Mesmo certas atividades enquanto tais são algo parecido a um daimon. Por volta de 700 a.C., na época de Hesíodo, surge pela primeira vez a concepção, bastante difundida no século III, de um daimon escoltando constantemente o indivíduo. No século IV; ele causa a infelicidade ou no infortúnio do indivíduo. No século IV começou-se a fazer oferendas a um daimon bom (aghathos) enquanto espírito domestico.
Platão utiliza a palavra de maneira ambígua, quase sempre como sinônimo de theos( Deus), agregando-lhe as vezes a nuance de um ser bem “próximo ao homem”. Assim, Diotima, como sabemos, afirma em O Banquete, que Eros era um grande daimon, “pois tudo o que é demoníaco- (pan to daimonion) está entre Deus e o mortal”, e à pergunta de Sócrates a respeito de qual era sua função, ela responde: “ a de interpretar e transmitir aos deuses o que é dos homens, e aos homens o que vem dos deuses: àqueles, orações e oferendas e a estes, ordens e recompensas pelas oferendas. No meio, portanto, está a conexão,de modo que o todo (topan) esta ligado em si mesmo. E também todas as profecias e esconjuros e toda a adivinhação e magia perpassam o demônio, pois Deus não se dirige aos homens, visto que todo o contato ou relação entre deuses e homens se dá através dele, tanto na vigília, quanto no sono... Existem muitos destes demônios e espíritos das mais variadas espécies, e Eros também é um deles.
No Estoicismo e no Platonismo, a sutil distinção entre deuses e homens tornou-se mais nítida: os deuses são poderes universais imensos, superiores, distantes dos homens e consideravelmente longe dos sofrimentos e das paixões humanas.Os daimons, ao contrário, povoam o reino intermediário entre o Olimpo e os homens, sobretudo a esfera do ar e o mundo sublunar, e reúnem-se ali com os espíritos da natureza,das fontes, plantas e animais. Esta concepção do final do Platonismo foi formulada por Apuleio de Madaura da seguinte maneira: os poetas teriam erroniamente atribuído aos deuses o que valia para os demônios: “Eles elevam e favorecem os homens, outros eles oprimem e humilham. Eles sentem portanto compaixão, indignação, felicidade e medo e todos os sentimentos da natureza humana...todas as tempestades distantes da tranqüilidade dos deuses do Céu. É que todos os deuses permanecem sempre no mesmo estado espiritual... pois nada é mais perfeito do que um Deus... Mas todas estas disposições, ao contrário, ajustam-se à natureza inferior dos demônios que tem em comum com os de cima a imortalidade e com os de baixo, as paixões... por isso denominei-os “passivos” por estarem submetidos às mesmas desordens anímicas que nós”. Num certo sentido, o espírito do homem, o seu “genius” e o seu “espírito bom” ( como o Daimonion de Sócatres) são também “daimons”, assim como os outros espíritos habitantes do ar. Depois da morte, eles se tornam Lêmures ou Lares ( deuses domésticos)ou, se eram maus, larvas (Spuks ruins).
(...)
No final da Antiguidade, a distinção entre deuses, longe dos sofrimentos terrenos, e demônios, sujeitos a todas as paixões humanas, me parece muito importante: os daimons estão mais próximos do homem do ponto de vista subjetivo-psicológico, do que os deuses. Cícero designava-os até como “mentes” ou “animi”, isto é, “almas”. Outros autores denominam-nos “potestates”, isto é, poderes. Encontramos esta designação de “alma” em muitos autores, mesmo os antigos, especialmente no Estoicismo, em Poseidônios, Fílon, Plutarco, Clemente de Alexandria e outros. A luz da psicologia junguiana, a antiga distinção entre deuses e homens significa o seguinte: os deuses representam antes as estruturas básicas arquetípicas da psique afastadas da consciência, e os demônios, ao contrário, configuram os mesmos arquétipos, só que de uma forma mais próxima da cosnciência e da vivência subjetivo-interior do homem. É como se um aspecto parcial dos arquétipos começasse a se aproximar do indivíduo, a se afeiçoar a ele, tornando-se uma “alma agregada”.”
(Marie Louise von Franz. Reflexões da Alma. Projeção e recolhimento Interior na Psicologia de C G Jung./ tradução de Erlon Jose Paschoal. SP: Cultrix/Pensamento, s/d, p.122-124)

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