Em seu ensaio “UM MUNDO SEM SUBSTÂNCIA OU ESSÊNCIA”, o célebre filósofo norte americano Richard Rorty, afirma a convergência entre a filosofia analítica norte-americana e a filosofia do continente europeu a partir de uma tendência comum a antimetafísica e antiessencialista do pensamento contemporâneo, na tentativa de desvencilhar-se do dualismo herdado da tradição grega. Desta forma, filósofos tão diferentes como Frederich Nietzsche, Donald Davidson, Jaques Derrida, John Dewey e Michel Foucaut, convergem, cada um a sua maneira, para uma critica radical da tradição filosófica ocidental.
Nas palavras do autor,
“Como uma primeira ilustração da convergência entre a filosofia analítica e a continental, quero mostrar que esses dois slogans acabam sendo mais ou menos a mesma coisa. Ambos são maneiras de dizer que nunca seremos capazes de pisar do lado de fora da linguagem, nunca seremos capazes de apreender uma realidade uma realidade que não seja mediada por uma descrição lingüística. Assim, ambos são maneiras de dizer que devemos suspeitar da distinção grega entre aparência e realidade, e que devemos tentar substituí-la por algo como a distinção entre “ descrições menos úteis do mundo” e “descrições mais úteis de mundo”. Dizer que tudo é uma construção social é dizer que nossas práticas lingüísticas estão tão entrelaçadas com nossas outras práticas sociais que nossas descrições de natureza, assim como nossas descrições de nós mesmos, serão sempre uma função de nossas necessidades sociais. Dizer que toda consciência é um fato lingüístico é dizer que não temos nenhum conhecimento do tipo que Bertrand Russell, trabalhando na tradição do empirismo britânico, chamou de “conhecimento por familiaridade”. Todo conhecimento que temos é do tipo que Russell chamou de “conhecimento por descrição”. Se associarmos os dois slogans, teremos a afirmação de que o nosso conhecimento todo é formado por descrições adequadas de nossos propósitos sociais correntes.
Esta afirmação é antimetafísica no sentido mais amplo do termo metafísico- o sentido empregado por Heidegger, quando ele dizia que todo platonismo é metafísico e toda metafísica é platonismo. Platonismo, nesse sentido amplo, é uma tentativa de libertar-se da sociedade, do nómos, da convenção e dirigir-se para physis, a natureza. Mas se os dois slogans que acabei de citar, estão corretos, então não existe algo como a physis a ser conhecido. A distinção nómos-physis-convenção-natureza-desaparece pelas mesmas razões que a distinção apar~encia-realidade também desaparece. Uma vez que se tenha dito que todo conhecimento é uma descrição, e que as descrições são funções de necessidades sociais, então “natureza” ou “realidade” só podem ser nomes para algo incognoscível- algo como a “coisa em si” de Kant. Todo movimento do pensamento filosófico ocidental, desde a época de Hegel, tem sido uma tentativa de evitar esse incognoscível.
Kant representou um momento de virada na história da filosofia ocidental, porque seu trabalho foi um reductio ad absurdum da tentativa de distinguir o papel do sujeito e o papel do objeto na constituição do conhecimento. Hegel compreendeu isso, e compreendeu que as distinções entre objetivo e subjetivo tinham de ser transcendidas. Infelizmente, o próprio Hegel utilizou os termos subjetivo e objetivo para descrever a sequência de descrições que as sucessivas necessidades sociais tornaram imperativas, à medida que o progresso intelectual e moral continuava, e utilizou a expressão “união entre sujeito e objeto” para descrever o fim da história. Isto foi um erro de Hegel, porque ele levou a sério demais um dualismo ultrapassado. Teria sido melhor se ele tivesse feito o que mais tarde Dewey fez: descrito o progresso intelectual e moral como crescimento, ao invés de emancipação, e tratado esse progresso como conduzindo à democracia, e não à auto realização do espírito absoluto. Dewey foi o filósofo que mais clara e explicitamente deixou de lado o propósito comum aos gregos e aos idealistas alemães- a representação acurada da natureza intrínseca da realidade- em benefício do propósito político da democracia participativa. É por isso que , como eu disse na primeira conferência, ele me parece a figura mais significativa e mais útil da filosofia do século XX.”
(Richard Rorth. Um Mundo sem Substâncias ou Essências in Pragmatismo: A Filosofia da Criação e da Mudança; Cristina Magro e Antônio Marcos Pereira, organizadores-BH:Ed. UFMG, 2000; p. 57 à 59)