sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

TRANSGRESSÃO DISCURSIVA

"(...) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar."
Michel Foucualt, A ordem do discurso

Inspirando-me, mas transbordando as questões colocadas na Ordem do Discurso de Michel Foucualt, digo que o ato de fala é aquilo que se produz através de um ou vários enunciados. Não é o dizer-se de um sujeito, mas o acontecer de um discurso, seu objeto e sua meta enquanto realidade discursiva é a normatização, a configuração da “palavra possível” como expressão da verdade.

O discurso é a linguagem assumida pelo sujeito da fala, sendo o sujeito aquele lugar vazio da enunciação que apenas desvela o sentido que o antecede, que estabelece através do seu ato, a miragem de um significado histórica e socialmente possível em determinada momento ou contexto coletivo.
Há relações de força inconscientes na produção do saber/poder que nos define em relação aos outros em função da posição discursiva que ocupamos, do atendimento ou não de certas expectativas sociais,  protocolos de fala e configurações da verdade.

Por isso o desviante, o dizer da loucura é tão intrigante.  Sua fala, ao fugir ao consenso racional, torna-se ininteligível e sem valor, porque não corresponde a nossas  expectativas. Como pratica social o discurso produz relações de inclusão/exclusão, condicionados a um regime institucionalizado de verdade.

O niilismo dadaísta, do qual o surrealismo e sua escrita automática são uma derivação, através de uma apropriação psicanalítica e irracional, quis por em cheque o dizer das coisas, a normatização racional. Assim estabeleceu uma estratégia de fuga a prisão dos protocolos de fala estabelecidos pelo racionalismo reinante. Mesmo hoje, cem anos depois das vanguardas artísticas de inicio de século XX, ainda nos insurgimos de forma inconclusiva contra os consensos racionais. Neste sentido, nada mais apropriado do que invocar Artaud e seu desesperado grito de existência contra os muros da ordem discursiva:

“Onde cheira a merda cheira a ser.
 (...) Então o homem recuou e fugiu.
E então os animais o devoraram.
Não foi uma violação,
 ele prestou-se ao obsceno repasto.

Ele gostou disso
 e também aprendeu a agir como animal
 e a comer seu rato.”

  (ARTAUD, Antonin. Para acabar com o Julgamento de Deus. IN: WILLER, Cláudio. Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 153)


Artaud, convida a vertigem, ao limite da palavra, a transgreção. Sua fala é um lugar privilegiado de criação, de transbordamento da linguagem, cuja nervura ele busca através de seu próprio ser. Em poucas plavras, a fala pode se insurgir contra o discurso, recusar seu próprio lugar. Ela pode tornar-se “literatura” contra a pretensão à verdade.


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