quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

REPENSANDO O NATAL

Celebração de origem pagã vinculada ao hemisfério norte, incorporada pelo cristianismo durante a Idade Media em franco exemplo de sincretismo religioso, o natal vem hoje em dia cada vez mais se desprendendo de suas formatações tradicionais/religiosas e transformando-se em um apêndice do reveillon enquanto rito de passagem e reminiscência de uma experiência da temporalidade cíclica de viés mitológico.

Em outras palavras, o natal vem se secularizando nos últimos anos, perdendo sua roupagem religiosa/mitológica para converte-se em uma experiência cada vez mais concreta e menos ritualistica.
Avesso a data, a excitação e caoticidade que definem este período final do ano nos grandes centros urbanos, vejo com bons olhos esta tendência a uma reinvenção espontânea da experiência natalina e, para minha surpresa, de alguma forma, percebo que não estou sozinho em tal perspectiva reformista.
Prova disso é o pequeno ensaio do historiador Boris Fausto publicado no caderno MAIS da Folha de São Paulo no último domingo ( 20/12) intitulado muito sugestivamente “Natal fora de tempo”, em referência ao seu reformismo natalino.
Parafraseando o autor, o natal se caracteriza, como outras comemorações, por um traço negativo, em grau mais elevado do que as outras: a celebração obrigatória e com data marcada. Considerando a tendência cada vez maior para metamorfoses do rito natalino, talvez um dia seja possível escalonar o natal ao longo do ano autorizando cada indivíduo à escolher seu mês favorito de natal diluindo os indesejáveis tumultos de fim de ano.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

ALAN LIGHTMAN E O FISICO COMO ROMANCISTA


Hoje em dia, um cada vez maior numero de cientistas escrevem para o grande público. O que é um fenômeno realmente interessante, considerando a complexidade de muitos temas divulgados diante de nosso conservador senso comum.

Um bom exemplo disso é a coletânea O FUTURO DO ESPAÇO TEMPO inspirada pela celebração denominada Kripfest, no Caltech, ocorrida em junho de 2000 em comemoração dos sessenta anos do físico Kip Thorne.

A lista de palestrantes do evento contou com nomes de peso como o do britânico Stephen Hawking e do cientista de vanguarda Alan Lightman, autor de obras de divulgação como SONHOS DE EINSTEIN .

Fugindo de temas espinhosos como viagens no tempo e buracos negros, que perpassam os textos da coletânea, quero aqui comentar justamente sobre a contribuição deste último autor citado através de seu ensaio O FISICO COMO ROMANCISTA. Neste, Lightman busca estabelecer as diferenças e afinidades entre as linguagens artística e cientifica de forma realmente interessante e provocativa.

Segundo ele, físicos e romancistas são igualmente movidos por uma compulsão irracional e inspirados pela estética.
Partindo desta premissa, o autor assim nos configura o processo criativo tanto nas artes quanto nas ciências:

“ Uma experiência que os físicos e os romancistas possuem em compartilham, uma experiência verdadeiramente extraordinária, é o momento de criação.
Todos sabemos que uma grande parte das atividades dos cientistas e dos artistas não é especialmente criativa: desenvolver os detalhes de um calculo, verificar a lubrificação do selo de uma bomba de vácuo, pesquisar o ambiente para um romance, aplicar o tom de fundo de uma pintura. Mas, há outros períodos, que podem durar apenas alguns segundos, ou algumas horas, em que ocorre algo diferente, quando o cientista ou o artista ficam possuídos pela inspiração e acho que a experiência, neste caso, é bem similar.”
(...)
Que belo e estranho paradoxo da criatividade, esse que nos faz mergulhar profundamente dentro de nós mesmos para criar algo, recorrendo as coisas mais pessoais e intimas, e ao mesmo tempo separar-nos completamente de nós próprios no processo. Quando estou escrevendo, esqueço onde estou e quem sou. Torno-me puramente espiritual; misturo-me com os outros espeiritos que crio. Na minha percepção, esses são os momentos em que um ser humano mais se aproxima da eternidade. São os meus momentos de maior felicidade.”

(Alan Lightman. O físico como romancista. In O Futuro do Espaço Tempo/ Stephen W. Hawking... ( et al.): introdução Richard Price/tradução Jose Viegas Filho-SP: Companhia das Letras, p. 197- 198)



Difícil não perceber aqui o quanto, do ponto de vista daquilo que, na falta de melhor e mais digna palavra, chamamos de “espiritual”, domínio próprio das lógicas discursivas de inspiração religiosa, realiza-se plenamente como algo inerente a condição humana sem o peso de discursos e premissas metafísicas ou teológicas...


A verdade é que tanto físicos e artistas devem muito a imaginação criadora em sua inventiva busca de “verdades”.


Mas, como também nos alerta este fantástico ensaio, cientistas e artistas se distanciam na construção pessoal de suas linguagens próprias: O cientista, por regra geral, procura nomear, conceitualizar, as coisas na mesma medida em que, um literato, por exemplo, busca evitá-lo.

Fato que não impede que ambos, já muitos distantes de qualquer dogmatismo ou noção tradicional de verdade de inspiração metafísica, se aproximem novamente diante da irracionalidade radical que sustenta nossa experiência de mundo na construção de iuma nova experiência de racionalidade:



Como fui treinado nas ciências e nas varias maneiras de dar nome às coisas, enfrentei, na qualidade de escritor ficcionista, uma luta constante. O grande duelo da minha vida literária, e da minha vida como um todo, deu-se na tensão entre o racional e o intuitivo, o lógico e o ilógico, o certo e o incerto, o linear e o não linear, o deliberado e o espontâneo, o previsível e o imprevisível.

Vivo essa tensão sob a forma de uma constante torção do estômago, quando estou consciente do meu corpo, e sempre como uma comoção mental. Aprendi a viver com este desconforto. Ele pode até mesmo ser uma fonte de força. Com o tempo, passei a crer que tanto a certeza quanto a incerteza são necessárias no mundo. Talvez esta seja uma idéia obvia para a maioria das pessoas, mas ela não é facilmente reconhecível para alguem que foi treinado nas ciências.”



( Idem, p.189-190)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

CRIANÇA DO SOL



Tenho saudades do azul
Do céu da infância;
Das horas de pouca realidade
Em que existia no prazer das coisas.

 
Tenho saudades dos eus
e imaginações
que em segredo habitavam a casa e o quintal.

 
Para se estar vivo é necessário um existir criança.




CELTIC POEM



Nada é digno de ser dito

Dentro do tempo
Que cria
A indeterminação
E finitude de todas as coisas
Como um caprichoso deus dos acasos...

Sei que lá fora,
As horas correm
Em busca do onipresente nada
Livres do peso
De qualquer significação,
Sentimento ou sentido.

Por isso,
Procuro apenas
Surpreender-me outro,
Alguém livre de si mesmo,
Na absurda canção
Cantada em um sorriso cético
E céltico....

“I am mysey but vile link
Amidlife’s weary chain”

domingo, 20 de dezembro de 2009

CITAÇÃO ALEATÓRIA SOBRE A IMAGINAÇÃO CRIADORA INSPIRADA EM BACHELARD



“ O encadeamento das imagens e suas relações mútuas foram evidentemente apresentados como gratuitos e incoerentes. Ao contrário, para Barchelard, as imagens obedecem a uma lógica, ou mais exatamente a uma dialética e a uma rítmica, que não tem nada a invejar às do conceito. O imaginário é dotado de uma autonomia, de uma consistência, que permite retirar propriedades gerais e coerentes de um mundo e de determinar leis de uma física onírica, as imagens estando submetidas a um verdadeiro “determinismo”. Em um sentido, o real está bem mais submetido à contingência do que o irreal. Se Bachelard opta por um idealismo da imagem contra um realismo que conduziria a fazer das imagem um duplo empobrecido do percebido, ele aplica paradoxalmente um realismo ao mundo da imagem, que comporta então uma dimensão transcendental em relação ao sujeito. A imaginação, mesmo nos liberando do real, não procede anarquicamente, porque ela obedece a processos regrados, que Barchelard expôs de maneira empirica e disseminada, sem nunca retomá-las em uma verdadeira ciência do imaginário. Podemos tirar, portanto, de um lado, leis sintáxicas e, de outro, princípios semânticos.”



( Danielle Perin Rocha Pitta. Iniciação a teoria do imaginário em Gilbert Durand. RJ: Atrantica Editora, 2005 ( coleção filosofia), p. 51. )







O MITO DE MERLIN SEGUNDO ROBERT DE BORON

Quero aqui recorrer a um curioso mito medieval que personifica de modo ímpar a coincindentia oppositorum. Refiro-me a figura enigmática de Merlim. Em todas as épocas os poetas e os artistas expressaram de modo privilegiado as questões decisivas da vida coletiva. Muitas vezes denunciando, mesmo que involuntariamente, suas contradições mais veladas e as principais transformações em curso no Inconsciente Coletivo. A literatura européia do século XII não é exceção. Assim como a alquimia e os movimentos heréticos surgidos na mesma época em toda a Europa, a literatura inspirada pela chamada “matéria da Bretânea”, através da figura de José de Arimatéia, dá continuidade ao desenvolvimento do mito constelado, esboça uma reinterpretação do messianismo cristão que aponta para seu desdobramento.

A personagem de Merlim fez sua primeira aparição na literatura ocidental através da obra do clérigo galês GEOFFREY DE MONMOUTH (1100-1155). Por volta de 1135 surgem as PROPHETIA MERLINI, posteriormente incorporadas a HISTÓRIA REGUM BRITANNIAE (1136). Em 1148 aparece a VIDA MERLINI cuja a autoria, embora discutível, também é atribuída a GEOFREY. Foi por intermédio de sua obra que Arthur, até então um folclórico chefe guerreiro que se destacara no combate aos invasores saxões durante o século VI, converteu-se em um poderoso monarca comparável a personalidades como Alexandre, o Grande, e Carlos Magno. Uma das fontes das quais GEOFREY se valeu para a composição de sua obra foi certamente a HISTÓRIA BRITTONUM de NENNIUS DE MÉRCIA, mas muito pouco se pode falar sobre as referências literárias e folclóricas que inspiraram o autor. Curiosamente, a preocupação relativa e poética com dados históricos ou seculares de suas obras contradiz uma característica dos continuadores da dita “matéria da Bretânha”, ou seja, a intemporalidade dos personagens e seu universo vívido. Essa peculiaridade lhe distancia das canções de gesta ou de outras composições medievais como a anônima CANÇÃO DOS NIBELUNGEN ou a CANÇÃO DE ROLAND.

A HISTÓRIA REGUM BRITANNIAE é pouco depois do seu aparecimento na Inglaterra traduzida para o francês pelo normando WACE DE JERSEY sob o título de ROMANCE DE BRUTUS. A tradução apresenta alguns elementos inexistentes no original como, por exemplo, a primeira menção a mesa redonda de Arthur. Ao longo dos séculos XII e XIII, a partir da Inglaterra e especialmente da França, cria-se e divulga-se pelas cortes da Europa toda uma literatura que transforma e aperfeiçoa a crônica, recriando as lendas folclóricas da antiga Bretânha perpetuadas pela tradição oral.

O mais significativo literato que, depois de GEOFREY DE MONMOUTH, ocupou-se da chamada “matéria da Bretânea” foi o francês CRISTIEN DE TROYES em cuja a obra, porém, a figura de Merlim aparece de modo velado na imagem de misteriosos eremitas que surgem significativamente no caminho dos cavaleiros de Arthur durante suas andanças e aventuras. A associação definitiva entre Merlim, a Távola Redonda e a lenda do Graal, pelo que se sabe até o momento, foi estabelecida por um outro francês chamado ROBERT DE BORON. Sua obra, ao contrário da de CRISTIEN, é de cunho claramente teológico, justapõe a imagem do profeta de origem misteriosa a imagem do santo Graal criando entre elas uma unidade enigmática. É justamente a partir do MERLIM de ROBERT DE BORON, escrito entre duas outras obras, JOSÉ DE ARIMATÉIA e PERCIVAL OU A QUESTÃO DO SANTO GRAAL , que pretendo tecer minhas considerações.

Em linhas gerais, estou inteiramente de acordo com a leitura de MARIE LOUISE VON FRANZ que vê na dualidade da origem de Merlim, filho do diabo e de uma virgem pura temente a Deus, a concidentia oppositorum que o faz portador do princípio da totalidade de modo muito similar ao mercúrio alquímico. Este fato torna-se mais compreensível quando associado ao drama do velho rei pescador. Na leitura da citada autora, o rei moribundo do Graal, representa a atitude cristã envelhecida. Sua ferida na coxa, na região genital, alude ao problema da natureza e da sexualidade não solucionado pelo cristianismo e ao estado de dissociação característico da consciência cristã frente a repressão dos conteúdos anímicos personificados pelo imaginário pagão. Merlim parece atuar no sentindo da superação da unilateralidade do ideal de espiritualide cristão mediante a imagem do Graal como personificação de uma nova totalidade que se insinua de modo contraditório e misterioso no imaginário medieval.

Na interpretação de EMMA JUNG , o obscuro profeta dos tempos de Arthur, é um ser luciferiano, semelhante a mefistófeles, um representante do “intelecto in statu nascendi”, uma personificação viva do logos e, simultaneamente, portador da numen naturae enquanto um deus de duas faces análogo a Hermes ou ao mercurius duplex da alquimia. O Merlim de ROBERT DE BORON realiza esta ambigüidade de modo realmente exemplar. Ele estabelece sobre o mito cristão uma interpretação distinta e complementar a dos evangelhos canônicos e da Igreja. Merlim usurpa assim, mesmo que veladamente, o lugar de cristo como mediador entre o homem e Deus. Coisa que ele mesmo confessa:

“...E farei tantas coisas e falarei tanto, que me tornarei o ser mais ouvido nesta terra, depois de Deus”



Além disso, como esclarece ao eremita Blaise, que “mete por escrito” a lenda do Graal:

“...Entretanto este livro não estará revestido de autoridade, porque o senhor não tem autoridade, visto que não pode ser um apóstolo. Os apóstolos não meteram em escrito senão o que viram e ouviram de Nosso Senhor, ao passo que o senhor, o faz é meter no livro o que viu e ouviu por meio de mim. E assim como eu sou obscuro para as pessoas a quem não quero esclarecer, assim seu livro será cheio de segredos e poucos haverá que os desvendarão.”



Este caráter obscuro e ambíguo de Merlim marca toda a narrativa. Filho de um incubo e de uma virgem, anunciado por um concílio de demônios, instrumento da vingança dos mesmos contra os profetas que anunciaram a vinda de Cristo, Merlim descarta, entretanto, a possibilidade de uma regressão ao paganismo e realiza, por intermédio da obra do Graal, um caminho alternativo de redenção que tem como centro a Távola Redonda. O segredo do Graal, nesta versão associado as palavras trocadas entre Jesus e José de Arimatéia, em momento algum é revelado. Como podemos ler em a A LENDA DO GRAAL de EMMA JUNG e MARIE LOUISE VON FRANZ:

“Palavras secretas de algum tipo aparecem em todas as versões da lenda do Graal. A pergunta tão essencial que o buscador tem que fazer ao rei doente e cuja omissão acarreta o novo desaparecimento do Graal é uma outra forma de dizer a mesma coisa. “



O Graal representa, no texto de ROBERT DE BORON, um aspecto da trindade que penetra na matéria terrena estabelecendo uma ponte para a solução do problema dos opostos e do Mal. Neste sentido ele é, como o próprio Merlim, símbolo da coicidentia oppositorum, e, ao mesmo tempo, uma consciência exteriorizada e projetada, algo bastante semelhante ao que no primeiro milênio da era cristã era identificado com o Espirito Santo e a nova era que este inauguraria a partir do segundo milênio.

Além das palavras misteriosas trocadas entre Jesus e José, existem outras imagens obscuras na obra. Uma das mais decisivas é a do assento perpetuamente vazio à Távola Redonda. Associado ao lugar de Judas na santa ceia ele só pode ser ocupado pelo cavaleiro do Graal que, desta forma, muito se assemelha a um novo messias. Nesta imagem revela-se o mais decisivo conteúdo da versão cristianizada da lenda, ou seja, o significado escatológico do cálice sagrado enquanto portador da solução do drama divino cristão.

EMMA JUNG e MARIE LOUISE VON FRANZ oferecem uma fecunda interpretação da lenda que nos permite melhor entender sua tragicidade inegável: Como a sociedade medieval não era capaz de solucionar o problema da coicidentia oppositorum, a narrativa permaneceu inacabada e o Graal, assim como Merlim, desapareceu do mundo, em conseqüência, a Távola Redonda dissolveu-se de forma dramática. Cabe, entretanto, observar que Merlim é o próprio conteúdo do recipiente do Graal (que também é um túmulo!). Em linguagem psicológica, tratar-se-ia de uma personificação da busca pela realização do principium individuationis.

Quanto ao cavaleiro do Graal, se Deus se fez homem através de si mesmo por intermédio da mítica figura de Cristo, Percival é um novo portador da luz que deve tornar possível a transfiguração do universo pelo espirito humano. Em outras palavras, cabe-lhe realizar, através do espirito do homem, aquilo que deveria ser realizado por Cristo através do espirito de Deus. Ocupar o assento perigoso, o lugar de Judas, talvez corresponda justamente a expectativa de um novo messias, secular e humano, cuja a nova consciência redima a humanidade de todo sofrimento. Trata-se, desta forma, da gestão de uma nova imagem do homem coletivo, do Antrophos, que dê continuidade a “missão” do “filho do homem”.

Mas é curiosa a distância existente entre Percival, o buscador da totalidade e, portanto, herói cristão, e Merlim, o filho do diabo e portador da própria totalidade. Como ser de origem antagônica, dotado de talentos divinos e diabólicos, Merlim é na verdade o homem original a ser liberto, o arquétipo do Antrophos, enquanto Percival é aquele que busca encontrar sua “salvação” ou a superação do estado de dissociação. Ignorado em muitas versões da lenda Arthusiana, Merlim permanece ausente das peregrinações de Percival sendo curiosamente difícil deduzir qualquer relacionamento mais concreto entre estas duas personagens chaves da lenda.

A resposta ao problema do Graal parece ter sido esboçada pela literatura alquímica que, de muitas formas, representa a aurora das ciências modernas, do incomparável desenvolvimento técnico científico através do qual o homem contemporâneo substituiria a Deus no domínio da natureza e de suas energias.

O inacabamento do mito em nada prejudica a realização de Merlim enquanto profeta que parece, aliais, transcender a própria Távola Redonda. Recusando toda forma de poder e questão mundana, como sugere a versão mais popular da lenda, ele se entrega totalmente ao princípio de Eros através dos braços de Vivianne ou a dama do lago, personagem inspirada na deusa celta das águas, Muirgen. Seu destino ilustra de forma significativamente poética o humano desejo de completude e virtude acima das atrocidades, confusões e contradições do mundo. Por outro lado, mediante sua ambígua natureza que lhe permite o domínio tanto do passado quanto do futuro, Merlin, personifica o ideal do historiador que, na máxima de HEINE, é um profeta que olha para trás.



























O DEUS OBSCUNDITUS OU A TOTALIDADE NÃO REVELADA

CAPÍTULO X:


O DEUS OBSCUNDITUS OU A TOTALIDADE NÃO REVELADA

Nas conclusões finais da sua hermenêutica psicológica do dogma trinitário JUNG interpreta o símbolo da trindade divina como o indício de um processo secular de tomada de consciência ou, mais precisamente, a constelação de um arquétipo que se manifesta em três etapas que podem ser consideradas como um amadurecimento inconsciente em curso na psique coletiva.

Segundo ele,

“as três pessoas divinas são personificações das três fases de um acontecimento psíquico regular e instintivo, que tem uma tendência a expressar-se sempre sob a forma de mitologemas e através de costumes rituais , como p. ex. nas iniciações de puberdade e da vida masculina, nas ocasiões de nascimento, de casamento, de doença e de morte”



Em linhas gerais, portanto, a trindade é a manifestação gradual de um arquétipo cuja a imagem, durante o primeiro milênio cristão, foi traduzido antropomorficamente mediante a figura do Pai, do Filho, vida e pessoas diversas (Espirito Santo). Em termos psicológicos, podemos defini-la como uma presença psíquica extra consciente, isto é, uma presença coletiva sustentada por um poderoso consenso ou fascinosum que inrompeu na consciência humana em dado momento histórico. Um de seus paralelos pagãos é a trindade composta por Krisnha, Visnhu e Shiva, que também personificam três faces de uma só substância, ou a tríade dos grandes deuses mesotopâmicos constituída por An (céu), En- Lil (deus da atmosfera) e En Ki (senhor da terra).

No caso específico da trindade cristã, o processo trinitário intra-divino é antes de tudo a representação ideal e abstrata de um relacionamento Pai e Filho onde o primeiro se transforma no segundo na experiência de uma dissociação ontológica. O momento do Pai é o da indiferenciação primordial, da unidade de todas as coisas. O momento do filho, por sua vez, é o momento do antagonismo e da reflexão expressa não só pela autonomia em relação a figura do Pai, como também pela obscura relação com um adversário, o Diabo, que, de muitos modos, é similar e complementar a ele. O Espirito Santo, o terceiro termo, aparece neste contexto como um elemento de conciliação e superação da dualidade Pai e Filho, oferecendo ao drama uma possibilidade imprecisa de desdobramento. Cabe observar que o Espirito Santo é também, simultaneamente, quem gera o Filho no lugar do Pai e posteriormente o substitui entre os homens como parácrito universal. O Espirito Santo compreende portanto a plenitude do drama trinitário e corresponde a um estado mais consciente da humanidade em relação a divindade cristã ou, em termos psicológicos, ao Self.

Mas o que, afinal, essa imagem trinitária, e especialmente a figura de Cristo, significa do ponto de vista da totalidade psíquica? A teologia não apresenta respostas satisfatórias para tão pertinente interrogação, do mesmo modo que não resolve o problema do mal e outras questões correlatas de singular importância psicológica. Por outro lado, qualquer resposta unívoca, pretenda-se religiosa ou científica, seria evidentemente limitada dada a complexidade deste tema antes de tudo de natureza simbólica.

Não é difícil identificar similaridades entre Cristo, Mitra, Hércules Dionísio, Orfeu, Horus, Buda, dentre outros, a partir do modelo arquétipico da criança divina e do mito do herói civilizador. Caso se considere o peso da herança do monoteísmo e escatologia judaica sobre o desenvolvimento do Cristianismo, pode-se dizer que as contradições da imagem de Javé, principalmente seu lado tenebroso e digno de temor, conduziram, através de uma releitura do messianismo hebraico, a uma transformação da imagem divina expressa pela fragmentação do deus uno em três pessoas distintas condicionadas ao binário masculino Pai/Filho.

Ambos os esboços genealógicos não oferecem caminhos muito promissores para uma explicação satisfatória do Cristianismo enquanto fenômeno psico-histórico. O significado mais profundo do mito cristão permaneceu nestes dois mil anos profundamente obscuro. No EVANGELHO APÓCRIFO DE MARIA MADALENA, por exemplo, encontramos referências bastante curiosas à Cristo. O conhecimento do que está oculto na divindade (a gnose de Cristo) é colocado por Madalena nos seguintes termos:

“Eu, disse ela, tive uma visão do senhor e contei a ele. ‘Mestre, apareceste-me hoje numa visão’ Ele respondeu e me disse: ‘Bem aventurado sejas, por não teres fraquejado ao me ver. Pois onde está a mente há um tesouro.’ Eu lhe disse:’ Mestre, aquele que tem uma visão vê com a alma ou com o espirito? O salvador respondeu e disse: ‘Não vê nem com a alma nem com o espirito, mas com a consciência que está em ambos – assim é que tem a visão (...)



Na presente definição de gnose a mente e a consciência aparecem em posição privilegiada frente à alma e o espirito enquanto receptáculo da “revelação” da divindade. Além disso, insinua-se no texto, uma paradoxal valorização metafísica da natureza física. O fragmentário evangelho apócrifo inicia-se , afinal, com a seguinte descrição da natureza fundada na imagem do uno :

“O salvador disse: “Todas as espécies, todas as formações , todas as criaturas, estão umas nas outras, em dependência mútua, e se separarão novamente em sua própria origem, Pois a essência da matéria somente se separará de novo em sua própria origem. Pois a essência da matéria somente se separará de novo em sua própria essência .”



Esta unidade inalienável da matéria que se manifesta em todas as coisas é ao mesmo tempo questionada pelo seu aspecto sensual, que funciona como uma espécie de negação ou segundo termo de si mesma, pois,

“A matéria produziu uma paixão, que se originou de algo contrário a natureza. A partir daí todo o corpo se desequilibrará.”



A alegoria da ascensão da alma ao reino eterno que constitui o tema central do evangelho surge neste contexto como um retorno a unidade primordial da natureza e uma superação da paixão anti-natural gerada pela matéria. A seguinte fala atribuída a alma é, neste sentido, bastante sugestiva:

“Não fui reconhecida, mas reconheci que o todo está se desfazendo, tanto as coisas terrenas como celestiais.”



A intervenção de Cristo, de algum modo não muito claro, é associada a uma compensação deste impulso de desintegração da unidade natural. Tal tese aparece de forma mais clara nos ATOS DE JOÃO onde a quaternidade da cruz (matéria) em que Cristo é crucificado ganha uma conotação simbólica que supera a interpretação da crucificação como fato histórico e concreto:

“A cruz da unidade de todas as coisas não é a cruz de madeira e nas palavras de Jesus: ‘Fui tomado pelo que não sou, não sendo o que eu parecia ser para muitas pessoas. Ao contrário; o que dirão de mim é vil e indigno de mim’.”



O oblívio (inconsciência) do significado de Cristo é uma tese recorrente aos textos gnósticos. No caso dos ATOS DE JOÃO a recusa da crucificação associa-se a imagem de um cristo transcendente e imaterial que não se confunde com Jesus. Esta espiritualização absoluta da divindade que desce a realidade inferior da matéria expressa a idéia de um princípio estranho ao mundo que apontando para além dele revela sua própria natureza sem , entretanto, revelar a si mesmo completamente. Recorrendo novamente ao texto:

“O que és, vês porque te mostrei, mas só eu sei o que sou e ninguém mais.”



Enquanto logos, Cristo é uma substância obscura que comunica o arquétipo da coniunctio ou casamento entre psique e matéria. Esta idéia norteia tanto os ATOS DE JOÃO quanto o EVANGELHO DE MARIA MADALENA. Mas, como já afirmei no capítulo precedente, Cristo representa apenas metade do arquétipo da totalidade, sendo a outra metade representada pelo diabo. Tal como Cristo, ele desce ao mundo inferior da matéria e dos homens. Não o faz, entretanto, diferenciando-se da imagem do Pai mediante a incarnação por intermédio de uma virgem, mas confundindo-se totalmente com o mundo material, o que o distancia da sua natureza divina ou espiritual. Neste sentido, o diabo está mais próximo do homem do que cristo e, ao mesmo tempo, mais distante dele, pois identifica-se de modo inflacionado com Deus ao ponto de aspirar substitui-lo. Pode-se dizer que, de modo bastante contraditório, o diabo é o princípio espiritual que conspira contra a trindade idealizada. Podemos tomá-lo como a “vontade de poder” que permanece reprimida na personalidade de Cristo e o conduz a crucificação, assim como, também, uma projeção do lado tenebroso da divindade judaica. Por outro lado, é imprescindível devidamente considerar as nuanças e contradições da personagem em questão. A figura do adversário de Cristo é também, em muitos sentidos, uma projeção da sombra psicológica do próprio Cristianismo. Todos os conteúdos pagãos e outros padrões culturais de origem pré-cristã incompatíveis com o status quo da Igreja contribuíram para construção da figura do Diabo. O “senhor do mal”, enquanto imagem arquetipica da sombra, personifica todas aquelas tendências reprimidas, recusadas e esquecidas pelo cânone cristão. Uma das suas expressões mais pertinentes é a do princípio da quaternidade em detrimento da trindade como símbolo por excelência do self.

Não posso, evidentemente, esgotar aqui todos os significados e conteúdos atribuídos ao Diabo no folclore, na literatura e na teologia. O que não me impede absolutamente de procurar chamar atenção para a possibilidade de interpretá-lo como um símbolo da transformação que corresponde ao mesmo conteúdo inconsciente traduzido por Cristo enquanto mediador entre a dimensão do humano e do divino.

Em seu ensaio MEFISTÓFELES E O ANDRÓGENO OU O MISTÉRIO DA TOTALIDADE, ELIADE aborda com muita perspicácia o tema da associação e estranha amizade entre Deus e o Diabo presente em vários mitos cosmogônicos. Vale a pena aqui reproduzir um dos exemplos por ele citados:

“...O que nos interessa aqui são unicamente as variantes centro-asiáticas e do sudeste europeu que põem em evidência ou a consangüinidade de Deus- Diabo, ou o fato de Deus e o Diabo serem coeternos, ou finalmente, a importância de Deus para criar ou terminar o Mundo sem a ajuda do Diabo.

Assim, por exemplo, um mito russo proclama que nem Deus nem o Diabo foram criados , mas que existiam juntos desde o começo do Tempo. Ao contrário , segundo os mitos encontrados entre altaicos meridionais, entre os abakankatzines e os mordovinos , o Diabo foi criado por Deus. Mas é a forma como se dá a sua criação que é reveladora: pois, de algum modo, Deus produz o Diabo a partir da sua própria substância. Eis o que contam os mordovinos : Deus estava só sobre um rochedo “Se eu tivesse um irmão, faria o mundo!”, diz ele, e escarra sobre as Águas. Desse escarro nasce uma montanha. Deus a fende com sua espada e da montanha sai o diabo (Satã). Assim que aparece, o Diabo propõe a Deus que sejam irmãos e criem juntos o mundo. “Não seremos irmãos”, responde-lhe Deus, “mas companheiros”. E juntos, procederam à criação do mundo.”



Neste curioso testemunho folclórico a coincidentia oppositorum entre Deus e o Diabo, entre o superior e o inferior divino, estabelece uma interdependência entre o bem e o mal que insinua uma clara complementabilidade entre os opostos. Podemos atribuí-la a uma disposição latente a totalidade psíquica para superação da dualidade sujeito e objeto condicionante da consciência diferenciada. Esta mesma disposição, na opinião de ELIADE, parece inspirar de modo diferente a maioria dos textos gnósticos . Em suas próprias palavras:

“...certos textos apócrifos (Atos de Pedro, Atos de Felipe, Evangelho de Tomás, etc.) utilizam imagens paradoxais para descrever o Reino ou a subversão cósmica realizada pela vinda do Salvador. “ Fazer o fora como o dentro” ,“Fazer o alto como o baixo”, “ fazer últimos os primeiros”, “fazer direita a esquerda”, etc. são todas fórmulas paradoxais para exprimir a inversão total dos valores e das orientações operada pelo Cristo. É notável que essas imagens sejam utilizadas paralelamente às da androginia do homem e do retorno ao estado infantil. Cada uma dessas imagens realça que o Universo “profano” foi misteriosamente substituído por um Outro Mundo”



Além da “amizade” entre Deus e o Diabo, a unidade dos opostos no imaginário cristão regride a formas pagãs como a da androginia. Esta imago, tão recorrente no simbolismo alquímico, também encontrá-se significativamente presente nos textos gnósticos. Um exemplo disto é a seguinte passagem do EVANGELHO SEGUNDO TOMÉ O DÍTIMO:

“ Jesus viu criancinhas que estavam sendo amamentadas . Disse aos seus discípulos : “Essas criancinhas que estão sendo amamentadas são semelhantes àqueles que entrarão no reino”. Disseram-lhe: Poderemos então, como crianças, entrar no reino?” Jesus disse-lhes: “Quando fizerdes de dois um e quando fizerdes o interno tal qual o externo e o externo tal qual o interno, e o de cima tal qual o de baixo, e quando tornardes o homem e a mulher em um só, de tal forma que o homem não seja homem e a mulher não seja mulher, quando dispuserdes olhos no lugar dos olhos e a mão no lugar da mão, e o pé no lugar do pé, uma imagem no lugar de uma imagem, aí, então estarás no Reino.”



A unidade dos opostos, o retorno a um estado de inocência ou perfeição original, eqüivale aqui ao reino dos céus e a androginia como ímago da Concidentia oppositorum. O próprio Cristo personifica esta unidade e promete aos que o escutam e o seguem a possibilidade de se tornarem semelhantes a ele, pois:

“Quando fizerdes um de dois, tornar-vos-eis Filhos do Homem; e se disserdes: ‘Montanha, move-te’, ela se moverá.”



A referência a androginia associa-se no texto em questão a imago da câmara nupcial símbolo da recuperação da unidade perdida :

“Disse Jesus: ‘ Muitos estão à porta, mas somente os solitários entrarão na câmara nupcial.’ ”



O mesmo tema encontra-se presente no EVANGELHO DE FELIPE:



“Se a mulher não se houvesse separado do homem não teria morrido com ele. Sua separação tornou-se o começo da morte. Por isso veio Cristo , para anular a separação que existia desde o princípio, para unir a ambos e para dar a vida àqueles que haviam morrido na separação e uni-los de novo. (...)

“Digamos – se é permitido – um segredo: o Pai do Todo se uniu com a virgem que havia descido e um fogo o iluminou naquele dia. Ele deu a conhecer a grande câmara nupcial, e por isso seu corpo- que teve origem naquele dia- saiu da câmara nupcial como quem tivesse sido engendrado pelo esposo e a esposa. E também, graças a estes, encaminhou Jesus o Todo a ela, sendo preciso que todos e cada um dos seus discípulos entrem em seu lugar de repouso.



Ou ainda:

“...A união é constituída neste mundo por homem e mulher, a sede da força e da debilidade ; no outro mundo a forma de união é muito diferente.”



A câmara nupcial representa a coicidentia oppositorum, a revelação de um mistério ou manifestação de um princípio transcendente, trans-humano, na realidade deste mundo. Em termos modernos poder-se-ia falar de uma interpenetração da consciência pelo inconsciente e vice-versa, cujo conteúdo central é a divinização da matéria ou sacralização do profano. Trata-se de uma reflexão cara ao universo mental estruturante do Cristianismo primitivo cuja similaridade com certas formulações da alquimia medieval não é nada desprezível. Seria precipitado toma-las como elaborações ingênuas e fantasiosas. O assombroso e inédito avanço do conhecimento técnico científico dos últimos séculos pelo mundo cristão e o poder quase divino adquirido pelo homem para transformar a si mesmo e a natureza dão o que pensar. Impossível não associar de alguma forma o “milagre” do desenvolvimento técnico científico com o tema da incarnação da divindade, ou seja, com o mito do homem deus que personifica uma união ou interpenetração entre a dimensão do humano e do divino através da matéria.

A gradual irrupção do mundo no seio da experiência arquétipa cristã conduziu, a partir do segundo milênio da era cristã, a um aberto reconhecimento do seu oposto que desembocou nas ciências naturais modernas, ou seja, no "quatérnio" dos estados de agregação alquímica e a reafirmação no plano deste mundo da quartenidade como principio ordenador e arquétipo imprescindível as impressões sensoriais que a psique recebe dos objetos em movimento. Em outras palavras, a quartenidade gradualmente procedeu o princípio trinitário enquanto imagem central da cultura conduzindo o homem ocidental da Idade Média a uma nova imagem de mundo e realidade que, passando pelo Renascimento, culminaria no Iluminismo e no materialismo moderno.

É realmente espantoso como o Cristianismo desembocou no seu oposto, o que não torna tão descabido relacionar o mito do herói cristão com a prefiguração de um milenar processo em curso no inconsciente que produz uma espécie de entrechoque com a consciência e um crescente estado de inquietação e comoção. Considero totalmente impossível encontrar uma imagem coerente e sistemática do herói redentor tanto nos evangelhos canônicos quanto apócrifos. Ouso mesmo afirmar que é impossível chegar a qualquer conclusão segura sobre o significado do mito cristão. Arrisco-me apenas a afirmar que, de algum modo ele parece ser em parte uma variação simbólica do padrão arquétipo do deus da vegetação que ressurge dos mortos. Por outro lado, de um modo obscuro, ele corresponde à imagem fugidia de um conteúdo novo “pescado” no inconsciente pela consciência diferenciada que, entretanto, não consegue “digeri-lo” ou integra-lo satisfatoriamente.

Uma imagem arquetípica nasce de uma matriz psíquica incognoscível que se expressa em vários símbolos, nomes e roupagens, como se deambulasse em torno de um centro do qual se aproxima e se afasta simultaneamente de modo tanto numinoso quanto ilusório. O símbolo do peixe, enquanto alegoria de Cristo, expressa, como já vimos, precisamente esta ambigüidade do arquétipo. JUNG o interpreta do seguinte modo:

“...o símbolo do peixe constitui uma representação espontânea da figura do Cristo do Evangelho e também um sintoma que mostra de que modo e com que significado ele foi assumido pelo inconsciente. Sob este aspecto, a alegoria patrística da captura do Leviatã ( a cruz entendida como anzol e o Cristo preso a ela como isca) é sumamente característica : Capturou-se um conteúdo (peixe), do fundo do inconsciente (mar), que ficou preso à figura de Cristo. Daí provém, provavelmente, a expressão característica de Agostinho: “de profundo levatus” (tirado das profundezas), que se aplica ao peixe. E também a Cristo? A figura do peixe surge das profundezas do inconsciente , ao encontro de Cristo, e quando Cristo era invocado como Ichthys (peixe),tal designação dizia respeito àquilo que fora arrancado das profundezas do inconsciente. O símbolo do peixe representa, portanto, uma ponte entre a figura histórica de Cristo e a natureza psíquica do homem na qual repousa o arquétipo do Redentor. Por esta via, Cristo se converteu na experiência interna, no “Cristo em nós”.



Este conteúdo capturado do fundo do inconsciente, sua tomada de consciência pelo homem, é um secular empreendimento que substancia toda evolução da cultura ocidental e cujos futuros desdobramentos ainda não são passíveis de qualquer previsão. Trata-se de um processo em curso nas profundezas do inconsciente que tem por palco o mais íntimo de cada indivíduo.

Não deve parecer tão descabido o interessante paralelo traçado por JUNG entre a imagem de Cristo e o símbolo astrológico de Peixes coincidindo assim o Eon de Peixes com o Eon Cristão. Através dele JUNG realmente resgatou uma das mais curiosas coincidências simbólicas da Antiguidade Tardia. A era astrológica de peixes inicia-se com a conjunção em . Todavia, como alerta o próprio JUNG, este paralelismo, perfeitamente possível e esclarecedor, não pode ser provado inequivocadamente em termos históricos tradicionais. É mais conveniente sustenta-lo como uma espécie de paralelo sincrônico delimitado por dada constelação arquetípica. Segundo o próprio autor:

“Embora seja impossível provar qualquer relação entre a figura de Cristo e o início da era astrológica de Peixes, contudo a sincronicidade do simbolismo do peixe do Salvador com o símbolo astrológico é bastante significativa para deixarmos de lhe dar o devido relevo.”



Um pouco mais adiante ele acrescenta:

“... O peixe pertence, por sua natureza, a estação chuvosa do inverno , assim como o Aquário e o Capricórnio (aigókerös). Como imagem do zodiáco, portanto, não merece maior atenção. A coisa só se torna um pouco estranha , quando a precessão dos equinócios desloca o ponto vernal para este sígno, dando início assim a uma nova era na qual a palavra “peixe” se transforma em designação do Deus feito homem, o qual, como já referi, foi imolado como carneiro e nasceu como peixe; pescadores são seus discípulos e aos quais Ele quer converter em pescadores de homens; alimenta milhares de pessoas com peixes milagrosamente multiplicados; é comido; Ele próprio, como peixe, como “sanctior cibus”, e seus seguidores são pequenos peixes, os “pisciculi”. De qualquer modo, podemos imaginar que, em face do conhecimento bastante difundido da astrologia, pelo menos alguma coisa de tal simbolismo, em determinados círculos gnósticos-cristãos , provem desta fonte. Mas parece que esta hipótese não pode pretender validade para as descrições dos evangelhos sinóticos, em especial.”



Como é fácil deduzir deste fragmento, os símbolos e mitologemas do peixe foram na época do Cristianismo primitivo possivelmente associados por algumas tendências gnósticas a imagem de Cristo como salvador e inaugurador de um novo éon. A constituição de uma cristologia, portanto, incorporou, mesmo que parcialmente, em seu universo conceitual alguns conteúdos pagãos de origem astrológica produzindo uma síntese bastante interessante. Nos evangelhos canônicos, talvez a partir de uma fonte diferente, a mesma associação entre Cristo e peixe encontra-se presente.

È suficiente lembrar que os peixes do zodíaco são filhos do lendário mestre babilônico da sabedoria Oanes que muito se aproxima de um deus peixe civilizador que surge das ondas ao amanhecer para instruir a humanidade. É a tal divindade que pertencem as águas anímicas habitadas por seres semi-divinos como os dois peixes do zodíaco. O fato deles serem representados em oposição um ao outro pode ser considerada uma alusão a unidade de conceitos complementares que não podem ser representados um sem o outro o que remete automaticamente ao problema da totalidade e da coicidentia oppositorum..

O mistério da totalidade e da união dos opostos, expressa pela imagem gnóstica da câmara nupcial, enquanto locus da conquista da integridade do fenômeno humano, da união do céu e da terra, da psique e da matéria ,ou ainda, do consciente e do inconsciente, constitui, ao meu ver, a questão central do mito cristão que, nesta perspectiva converte-se em uma variante do hiero gamos primitivo, vinculado aos rituais e mitos da fertilidade que, em última instância, remontam a pré história da consciência humana. A etimologia da palavra sexo, aliais, é bastante sugestiva. Sexus deriva de sectio que significa corte, separação e, neste sentido, traduz perfeitamente a idéia de uma unidade perdida ou ruptura de uma totalidade primordial a ser recuperada.

Não deve causar espanto o fato de, assim como o peixe, a serpente constituir um dos símbolos mais primitivos atribuídos a Cristo.

Como bem observa JUNG:

“A serpente constitui um equivalente do peixe. Do mesmo modo que o ‘consensus’ (concordância) do povo interpretou a figura anunciada do Redentor no sentido do peixe, assim também a identificou com a serpente: como peixe, porque emergiu de profundezas desconhecidas; como serpente, porque proveio misteriosamente da obscuridade. O peixe e a serpente são, com efeito, símbolos populares, empregados para designar movimentos ou experiências psíquicas que emergem, de forma surpreendente, assustadora ou salvadora, do fundo do inconsciente. É por isto que aparecem expressos, com tanta freqüências, no tema dos animais auxiliadores. A comparação de Cristo com a serpente é mais autêntica do que a comparação com o peixe, embora menos popular nos círculos do Cristianismo primevo.”



O Cristianismo possui raízes nos mais profundos e autênticos instintos e, de forma alguma, transcende o fundo mais obscuro, desconcertante ou natural da totalidade da existência. As associações entre a figura de Cristo com o peixe, a serpente ou ainda o cervo, tão presente na iconografia antiga e medieval, são de máxima relevância para uma avaliação ou apreensão dos seus significados e conteúdos psicológicos. O motivo mitológico da morte e do renascimento iniciático adquiri em sua variante cristã um conteúdo novo e misterioso cuja história e a evolução tendem a ir muito além do próprio Cristianismo tal como hoje o concebemos.

FRAGMENTO FILOSOFICO SOBRE A EXPERIENCIA COTIDIANA

Cotidianamente vivemos, em grande medida, inconscientes de nossas mais intimas contradições, limitações, dúvidas, ansiedades, medos, desejos e fantasias.

Apenas seguimos em frente em nosso concreto acontecer em caótico tempo e espaço.
Normalmente, todas as circunstancias da vida apenas nos ensinam o quanto não nos damos conta de nós mesmos, embriagados por palavras, conceitos e crenças de uso diário no permanente acontecer do vazio que tudo define entre o se fazer em  linguagem e a experiência do símbolo....



quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

LOVE IS REAL




O amor

Torna-se real
Em misto
De acasos e sortes
Que nos fazem imprudentes
No acontecer vazio dos fatos
E atos em multidão...


O amor é uma viva ilusão
Que nos acorda para fantasia da vida
No limiar do desejo
Perdido em meio aos impulsos
E necessidades que nos transformam
Na linguagem muda de nossos
Corpos...
O amor é uma mera alegoria
De juventude.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O satírico William Makepeace Thackeray



Nascido na índia, o satírico novelista William Makepeace Thackeray ( 1811-1863) é lembrado pela adaptação para o cinema de seu romance de época ( sec.XVIII) : As Aventuras de Barry Lyndon por Stanley Kubrick em 1975.

Durante a década de 1840 obteve significativo sucesso com dois livros de viagens: The Paris Sketch Book e O irlandes Sketch Book ( justamente o adaptado por Kubrick). Embora não muito lido hoje em dia, durante a era vitoriana, seu nome era comparado ao de Dickens. Sua reputação aumentou consideravelmente depois de 1850 com Pendennis romance parcialmente autobiográfico.
Em 1851 realizou uma série de palestras, sobre humoristas Inglêses do século XVIII, que repetiu em uma turnê pelos Estados Unidos em 1852-53. Em 1852, apareceu seu romance da vida do século 18, Henry Esmond.
Trata-se de um autor digno de ser redescoberto e relido...
Também lhe é atribuida pela tradição a invenção do termo "capitalismo".  

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

COTIDIANA ESPERANÇA



Ainda aguardo o dia seguinte...



O acontecer mais profundo


Do ato de viver


Nos particulares mundos


Contidos em cada segundo.






Ainda aguardo as cores


De um amanhã vivo


Que elucide


Toda a minha existência


Ensinando-me a vida


Como transformação permanente


Ou acontecer constante


De futuros


Que me realizam e transcendem...

NOTA SOBRE O BOM SENSO



O bom senso é o precário equilíbrio entre a realidade e nossa imagem pessoal de mundo. Ele é a “nossa consciência dos outros” no acontecer das coisas ou, simplesmente, aquela imprecisa fronteira que existe entre o pensamento e o fato no complexo universo oculto por traz das ações que definem o destino e caráter de cada indivíduo...


MEDOS



Meus medos são tantos



Que não cabem no peito,


Cobrem o mundo inteiro


De duvidas e incertezas


No silencioso drama


De percorrer atônico


Os dias


Em busca, simplesmente,


De mim mesmo.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

NOTA SOBRE O TEMPO QUE PASSA



Daqui a cem anos não estarei aqui ou em parte alguma. O mundo em que vivi NÃO MAIS EXISTIRÁ e tudo que eu possa ter feito ou sentido não passará de um eco mudo de abstrato passado.

Daqui a cem anos, todas as ambições, vontades, desejos, defeitos e qualidades que agora me afetam e agitam, não farão a menor diferença...
Mas eu se quer me importarei com isso em absoluto silêncio e inexistência...





terça-feira, 8 de dezembro de 2009

LEMBRANÇAS DE JOHN LENNON IN 2009...



Neste oito de dezembro de 2009, completam-se 29 anos do insano assassinato de John Lennon... Curioso como o tempo passa depressa....

Mas, parafraseando John, em diferentes momentos, diria que o fato é que ainda hoje acredito que os Beatles são mais populares que Jesus Cristo ( pelo menos para mim) e que deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor... Que sexo e nudez é melhor que violência, corrupção, hipocrisia, etc...
E, acima de tudo, tento fazer e viver meu próprio sonho contra o mundo espalhado em fragmentos e inspirações psicodélicas de meta cotidiano no mais profundo do pensamento ...
Sei que nestes quase trinta anos o mundo mudou bastante, mas as pessoas continuam as mesmas em seus limites, dores, burrices ou, simplesmente, na miopia social que nos torna convencionais peças da hipocrisia coletiva que define a existência contra o melhor de nossas singularidades ou individualidades...





NOTA SOBRE O TEMPO BIOGRÁFICO

Às vezes fico pensando no tempo que seria suficiente para a realização de minha mínima biografia... Abarcaria ele, certamente, pelo menos dois séculos no casar do passar do mundo e de mim mesmo nas possibilidades concretas que transcendem o momento....



Mas, concretamente, vivemos de fronteiras que separam o querer, o pensar e o viver imediato... Jamais nos tornamos na vida simplesmente nós mesmos...

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

DOROTHY WORDSWORTH: UMA DISCRETA VOZ FEMININA...



No cenário da poesia inglesa Dorothy Wordsworth ( 1771-1885), irmã do famoso poeta romântico William Wordsworth, pode ser considerada uma espécie de patinho feio da literatura britânica. Afinal, nunca foi ou quiz fama e, de acordo com o biógrafo Richard Cavendish, não passou de "uma névoa em aprofundamento da senilidade". Nunca quiz ser uma literata e, justamente por isso, nos expõem involuntariamente, com máxima precisão, a marginalidade da mulher e do feminino na literatura da época. Sua obra nos chegou, inclusive à sombra da literatura do irmão que lhe consagrou o poema Abbey Tintern:



"Tintern Abbey"


FIVE years have past; five summers, with the length


Of five long winters! and again I hear


These waters, rolling from their mountain-springs


With a soft inland murmur. -- Once again


Do I behold these steep and lofty cliffs,


That on a wild secluded scene impress


Thoughts of more deep seclusion; and connect


The landscape with the quiet of the sky.


The day is come when I again repose


Here, under this dark sycamore, and view


These plots of cottage-ground, these orchard-tufts,


Which at this season, with their unripe fruits,


Are clad in one green hue, and lose themselves


'Mid groves and copses. Once again I see


These hedge-rows, hardly hedge-rows, little lines


Of sportive wood run wild: these pastoral farms,


Green to the very door; and wreaths of smoke


Sent up, in silence, from among the trees!


With some uncertain notice, as might seem


Of vagrant dwellers in the houseless woods,


Or of some Hermit's cave, where by his fire


The Hermit sits alone.


These beauteous forms,


Through a long absence, have not been to me


As is a landscape to a blind man's eye:


But oft, in lonely rooms, and 'mid the din


Of towns and cities, I have owed to them


In hours of weariness, sensations sweet,


Felt in the blood, and felt along the heart;


And passing even into my purer mind,


With tranquil restoration: -- feelings too


Of unremembered pleasure: such, perhaps,


As have no slight or trivial influence


On that best portion of a good man's life,


His little, nameless, unremembered, acts


Of kindness and of love. Nor less, I trust,


To them I may have owed another gift,


Of aspect more sublime; that blessed mood,


In which the burthen of the mystery,


In which the heavy and the weary weight


Of all this unintelligible world,


Is lightened: -- that serene and blessed mood,


In which the affections gently lead us on, --


Until, the breath of this corporeal frame


And even the motion of our human blood


Almost suspended, we are laid asleep


In body, and become a living soul:


While with an eye made quiet by the power


Of harmony, and the deep power of joy,


We see into the life of things.


If this


Be but a vain belief, yet, oh! how oft --


In darkness and amid the many shapes


Of joyless daylight; when the fretful stir


Unprofitable, and the fever of the world,


Have hung upon the beatings of my heart --


How oft, in spirit, have I turned to thee,


O sylvan Wye! thou wanderer thro' the woods,


How often has my spirit turned to thee!


And now, with gleams of half-extinguished thought,


With many recognitions dim and faint,


And somewhat of a sad perplexity,


The picture of the mind revives again:


While here I stand, not only with the sense


Of present pleasure, but with pleasing thoughts


That in this moment there is life and food


For future years. And so I dare to hope,


Though changed, no doubt, from what I was when first


I came among these hills; when like a roe


I bounded o'er the mountains, by the sides


Of the deep rivers, and the lonely streams,


Wherever nature led: more like a man


Flying from something that he dreads, than one


Who sought the thing he loved. For nature then


(The coarser pleasures of my boyish days,


And their glad animal movements all gone by)


To me was all in all. -- I cannot paint


What then I was. The sounding cataract


Haunted me like a passion: the tall rock,


The mountain, and the deep and gloomy wood,


Their colours and their forms, were then to me


An appetite; a feeling and a love,


That had no need of a remoter charm,


By thought supplied, nor any interest


Unborrowed from the eye. -- That time is past,


And all its aching joys are now no more,


And all its dizzy raptures. Not for this


Faint I, nor mourn nor murmur, other gifts


Have followed; for such loss, I would believe,


Abundant recompence. For I have learned


To look on nature, not as in the hour


Of thoughtless youth; but hearing oftentimes


The still, sad music of humanity,


Nor harsh nor grating, though of ample power


To chasten and subdue. And I have felt


A presence that disturbs me with the joy

Of elevated thoughts; a sense sublime


Of something far more deeply interfused,


Whose dwelling is the light of setting suns,


And the round ocean and the living air,


And the blue sky, and in the mind of man;


A motion and a spirit, that impels


All thinking things, all objects of all thought,


And rolls through all things. Therefore am I still


A lover of the meadows and the woods,


And mountains; and of all that we behold


From this green earth; of all the mighty world


Of eye, and ear, -- both what they half create,


And what perceive; well pleased to recognise


In nature and the language of the sense,


The anchor of my purest thoughts, the nurse,


The guide, the guardian of my heart, and soul


Of all my moral being.


Nor perchance,


If I were not thus taught, should I the more


Suffer my genial spirits to decay:


For thou art with me here upon the banks


Of this fair river; thou my dearest Friend,


My dear, dear Friend; and in thy voice I catch


The language of my former heart, and read


My former pleasures in the shooting lights


Of thy wild eyes. Oh! yet a little while


May I behold in thee what I was once,


My dear, dear Sister! and this prayer I make,


Knowing that Nature never did betray


The heart that loved her; 'tis her privilege,


Through all the years of this our life, to lead


From joy to joy: for she can so inform


The mind that is within us, so impress


With quietness and beauty, and so feed


With lofty thoughts, that neither evil tongues,


Rash judgments, nor the sneers of selfish men,


Nor greetings where no kindness is, nor all


The dreary intercourse of daily life,


Shall e'er prevail against us, or disturb


Our cheerful faith, that all which we behold


Is full of blessings. Therefore let the moon


Shine on thee in thy solitary walk;


And let the misty mountain-winds be free


To blow against thee: and, in after years,


When these wild ecstasies shall be matured


Into a sober pleasure; when thy mind


Shall be a mansion for all lovely forms,


Thy memory be as a dwelling-place


For all sweet sounds and harmonies; oh! then,


If solitude, or fear, or pain, or grief,


Should be thy portion, with what healing thoughts


Of tender joy wilt thou remember me,


And these my exhortations! Nor, perchance --


If I should be where I no more can hear


Thy voice, nor catch from thy wild eyes these gleams


Of past existence -- wilt thou then forget


That on the banks of this delightful stream


We stood together; and that I, so long


A worshipper of Nature, hither came


Unwearied in that service: rather say


With warmer love -- oh! with far deeper zeal


Of holier love. Nor wilt thou then forget,


That after many wanderings, many years


Of absence, these steep woods and lofty cliffs,


And this green pastoral landscape, were to me


More dear, both for themselves and for thy sake!


By William Wordsworth (1770-1850).


[Composed A Few Miles Above Tintern Abbey,


On Revisiting The Banks Of The Wye


During A Tour. July 13, 1798.]

Tradução:




Cinco anos à passaram, cinco Verões

e cinco Invernos longos! E outra vez

ouço estas águas que dos montes rolam

com tão doce murmúrio. Tomo a ver

estas altas escarpas majestosas

que no isolado matagal imprimem

ideias de mais funda solidão.

E à paz do céu eu ligo esta paisagem.

O dia me voltou em que repouso

uma vez mais à sombra do sicômoro,

e vejo desenhados os cultivos,

e os tufos do pomar que ainda imaturo

nesta estação do ano é verde, e não

se distingue dos bosques, nem perturba

o verde da paisagem. Ainda outra vez

contemplo as sebes, indistintas já,

porque cresceram bravas; e as herdades

verdes até ao limiar das portas;

e entre o arvoredo os ascendentes fumos!

Alguns são tão incertos, como se

fossem de vagabundos pelos bosques

ou de caverna de eremita aonde

junto do fogo el' esteja.

Esta beleza,

na longa ausência, nunca foi pra mim

como paisagem na Visão de um cego:

mas, amiúde, em quartos solitários

ou nas cidades agitadas, eu,

em horas de amargura, lhes devi

no sangue e no meu peito sensações

que entram às vezes no mais puro de alma

num repousar tranquilo. E sentimentos

de prazer não-lembrado, quais, talvez,

poder não pouco é que hão-de ter naquela

parte melhor da vida do homem justo:

breves, sem nome, não-lembrados actos

de bondade ou de amor.. Nem menos, creio,

ainda lhes devo mais sublime dádiva,

um estado de alma em bem-aventurança

em que a pesada carga do mistério,

em que a opressão, que nos esmaga e gasta,

do não-inteligível deste mundo,

se toma leve: esse sereno estado

em que Os afectos nos conduzem suaves-

até que, o respirar em nosso corpo

e o movimento de correr o sangue

quase que suspendidos, dorme o corpo

e se transforma em palpitar de uma alma:

enquanto um olhar, aquietado pelo

fundo poder de alegres harmonias,

nos mostra a vida interior das coisas.

Se uma vã crença isto só for.. mas quanto -

em trevas ou por entre as várias formas

de um triste dia, quando o anseio inútil

e a febre deste mundo mais pesaram

no coração que bate, oh, quantas vezes

em espírito, voltei às tuas margens,

silvestre rio!, que vagueias por

bosques tão verdes - quanto a ti voltei!

E Ora, em relance de idear quase extinto,

num reconhecimento vago e frágil

e algo também de urna tristeza ambígua,

a paisagem do espírito renasce:

enquanto estou aqui, não só no senso

do presente prazer, mas na confiança

que neste instante o alimento e a vida

no futuro não faltam. O que ouso esperar

sem dúvida diverso do que eu era,

quando andei nestes montes qual cabrito

saltava nas encostas, Pelas margens

de fundos rios e torrentes frias,

por onde a Natureza me levasse:

mais como aquele que foge do que teme

que quem procura o que ama. A Natureza

(os mais rudes prazeres da juventude


e a alegria animal do movimento,


agora já perdidos) para mim

era tudo. Não posso descrever

o que por mim eu era. A catarata

de ecos me fascinava: e a escarpa abrupta,


as montanhas, e os bosques mais sombrios,

as suas cores e formas então eram

como um desejo: sentimento e amor

não precisando mais remoto encanto

que o pensamento empreste, ou outro interesse


mais que o do próprio olhar. Mas esse tempo

passado é já, com seu prazer que doía,

suas vertigens de êxtase. Não me cabe

chorar ou lamentar, pois outros gozos

vieram, para tal perda, quero crer,

compensação bastante. É que aprendi

a ver a Natureza, não qual via

com juvenil descuido; mas ouvindo

a triste música da humanidade,

nem áspera, nem dura, poderosa

para nos aquietar. Tenho sentido


uma presença a perturbar-me alegre

com mais altas ideias: um sublime


senso de algo mais fundamente infuso,


cuja morada é a luz dos sois poentes,

do oceano a curva, o ar que nos rodeia,

o céu azul, e o pensamento humano:

um movimento, um espírito, que impele

tudo o que pensa, tudo o que é pensado,


e rola em quanto existe. Sou, portanto,

o amante ainda de montanhas, prados,

e bosques, e de tudo quanto vemos

na verde terra, e também todo o mundo


que ver e ouvir em parte criam e é

o que apercebem: e de aceitar feliz,

na Natureza e na sensual linguagem,

urna âncora do puro pensamento,

guia do que o meu peito sente,

e a alma do meu inteiro ser moral.

domingo, 6 de dezembro de 2009

ESpeculções sobre o devir...

A realidade não passa de um relativo consenso que construimos e reconstruimos todos os dias contra a ditadura de inércias e tradições...


*

Viver é puro devir e incerteza, apesar de nossas ilusões de segurança...

*

A chuva é, ao mesmo tempo, um símbolo de melancolia, reflexão e de uma quebra ou, pelo menos, perturbação do cotidianamente vivido ou ruptura do real...

*

Nada é mais incerto que minhas certezas...

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

"..."

Toda palavra é silêncio

Que nos faz crescer
Na decomposição de frases,
Sentidos e discursos
Que nos inventam em imaginações
De fatos.


Tudo é ingrata vontade
De invenções de um eu
Que nos desafia a ser
Contra o não sentido de tudo...